Simone Mazzer faz do álbum ‘Deixa ela falar’ um brado retumbante em defesa da liberdade dos corpos | Blog do Mauro Ferreira

Cotação: ★ ★ ★ ½

♪ A pintura criada pela artista plástica Márcia Falcão para a capa do quarto álbum de Simone Mazzer, Deixa ela falar, traduz em imagem o conceito de disco que soa como grito de liberdade em defesa da alforria dos corpos que extrapolam os padrões ditatoriais de beleza.

Em rotação desde 30 de setembro, o álbum é o brado retumbante dessa atriz, cantora e compositora paranaense de ampla potência vocal. Só que o grito de Mazzer nem sempre se faz ouvir no tom exaltado sugerido pelo single editado em 16 de setembro com a música-título Deixa ela falar (Lydia Del Picchia e Luiz Rocha, 2019), apresentada no espetáculo de teatro Os outros (2019), do Grupo Galpão.

Na canção que arremata o disco, Olhos nus (Yantó, 2022), por exemplo, o berro de Mazzer em favor de todas as formas de amor e liberdade cala fundo em registro minimalista de voz e piano, o de Marco Scolari, arranjador e produtor musical da faixa.

Ambientada em atmosfera íntima, a balada de Yantó se afina com o conceito do álbum, mas destoa do espírito musical do álbum Deixa ela falar por ser a única faixa sem o molde do duo carioca Ant-Art, produtor musical e arranjador do disco gravado sob direção artística de Mazzer.

O nome Ant-Art é engenhoso por sugerir música feita na contramão, fora dos moldes da indústria pop, e ao mesmo tempo juntar as iniciais dos integrantes Antonio Fischer-Band (baixo, piano, teclados, synth, violão de aço, programações, efeitos e vocal) e Arthur Martau (bateria, guitarra, violões, pandeirola, programações, efeitos e vocais).

Simone Mazzer com o duo Ant-Art, produtor musical do álbum ‘Deixa ela falar’ — Foto: Gabriela Perez / Divulgação

Situado nessa contramão, o disco Deixa ela falar foi gravado neste ano de 2022, mas descende de shows feitos pela cantora com o Ant-Art em 2018, ano em que Mazzer também lançou single com a então inédita música Corpo (Luisão Pereira, 2018), prenúncio do tom politizado do álbum. Corpo reaparece no álbum com outro arranjo.

Dona de voz volumosa, Simone Mazzer é artista vocacionada sobretudo para a cena, pela dramaticidade que potencializa o canto da intérprete. No disco, a teatralidade por vezes se esvai, como na abordagem de O crime (1969), a menos conhecida das parcerias de Jards Macalé com José Carlos Capinan.

Música lançada por Macalé em 1969, regravada pelo grupo MPB4 em 1970 e desde então nunca mais abordada, O crime tem a narrativa abrandada no registro feito por Mazzer com participação do próprio Macalé. É como se o canto fosse na direção contrária da letra que expõe “quadro em chamas” na cena de sangue vertido pelo punhal que ainda fere mulheres na sociedade patriarcal.

Sem lei (2022), música feita por Iara Rennó a partir de poema escrito por Duda Brack após ver show de Mazzer, corrobora o pensamento feminino que pauta o disco, deixando a sensação de que o pulso dos versos de Duda é mais forte do que a melodia de Rennó. Até por isso, o Ant-Art brilha como arranjador, fazendo a sonoridade ficar mais intensa, noise, à medida em que a faixa avança.

Aliás, o duo Ant-Art transita muito pela trilha do indie-rock. É na batida do rock que Simone Mazzer solta o grito de Mulheres livres (Arthur Martau, Bernardo Vilhena e Simone Mazzer, 2002) em alto e bom som.

Desmanche (Duda Brack, Simone Mazzer, Arthur Martau e Antonio Fischer-Band, 2022) se insinua como samba, pelo ronco inicial da cuíca de Mafran Maracanã, mas vai caindo na cadência do indie-rock em atmosfera pontuada pela alternância de ritmos.

Simone Mazzer canta ‘Arrastão’, sucesso de Elis Regina (1945 – 1982), no quarto álbum, ‘Deixa ela falar’, lançado em 30 de setembro — Foto: Gabriela Perez / Divulgação

Corporal (2022) é outra faixa pontuada por virada rítmica. Começa com a estranheza entranhada habitualmente no cancioneiro de Ava Rocha – compositora do tema, feito para Simone Mazzer – até que a gravação vai ganhando corpo e progressiva vivacidade até se tornar festa disco-funk com direito a coro formado pela vozes de Antonio Fischer-Band, Arthur Martau, Carla Yared, Eber Inácio, Leticia Guimarães, Pedroca Monteiro, Thiago Sacramento e da própria Simone Mazzer.

Em Conta marinheiro (Eduardo Dussek e Luiz Carlos Góes), música apresentada pela cantora no show Corpo (2018) e até então inédita em disco, quem entra em cena é a dama do cabaré, evocando a aura teatral de antecessoras como Cida Moreira na gravação sublinhada pelo toque do acordeom de Marco Scolari. Ao longo de seis minutos, Mazzer mergulha na saga contada na verborrágica letra de Luiz Carlos Goés (1944 – 2014).

Conta marinheiro é a faixa do álbum Deixa ela falar que mais se conecta com a atmosfera de Férias em videotape (2015), disco que projetou Simone Mazzer em escala nacional, três anos após a artista começar a ganhar visibilidade como cantora a partir de shows apresentados em 2012 na cidade do Rio de Janeiro (RJ).

Em outro mar, Arrastão (Edu Lobo e Vinícius de Moraes, 1965) emerge com força e, mesmo sem provocar o efeito catártico do registro emblemático de Elis Regina (1945 – 1982) em festival da canção, se ajusta ao tom engajado do álbum porque dar voz a uma letra que cita orixá é ato político no Brasil de 2022.

Brado retumbante que deve ganhar mais corpo no palco, o álbum Deixa ela falar engrandece Simone Mazzer na cena nacional pela firme tomada de posição em defesa das liberdades.

Simone Mazzer canta ‘O crime’ com Jards Macalé no álbum ‘Deixa ela falar’, abrandando música lançada em 1969 por Macalé — Foto: Gabriela Perez / Divulgação

Fonte

Compartilhe:

inscreva-se

Junte-se a 2 outros assinantes