Metamorfose de Miúcha para voar como mulher e cantora é o mote de filme de sensibilidade feminina | Blog do Mauro Ferreira

Resenha de documentário musical da 24ª edição do Festival do Rio

Título: Miúcha – A voz da bossa nova

Direção: Daniel Zarvos e Liliane Mutti

Cotação: ★ ★ ★ ½

♪ “Acho que estou enlouquecendo por dentro. Por fora, sorrio e penteio os cabelos”, relata Miúcha, então com 33 anos, em carta enviada para a família em 1970, do México, onde vivia com o marido João Gilberto (1931 – 2019).

Espantoso, o relato é ouvido no documentário Miúcha – A voz da bossa nova, produção franco-brasileira que estreou no Brasil na noite de ontem, 13 de outubro, em sessão na 24ª edição do Festival do Rio.

Documentário feito há mais de dez anos, sob direção de Daniel Zarvos e Liliane Mutti, autora do roteiro, Miúcha – A voz da bossa nova pode frustrar quem esperar ver filme sobre a trajetória artística de Heloísa Maria Buarque de Hollanda (30 de novembro de 1937 – 27 de dezembro de 2018), cantora de atuação relevante, muitas vezes ofuscada pelo fato de ter sido muito caracterizada pela mídia como “a irmã de Chico Buarque”, “a ex-mulher de João Gilberto” e, mais recentemente, “a mãe de Bebel Gilberto”.

Até por ter recorte centrado em período que vai de 1963 a 1979, o filme resulta incompleto sob o prisma documental. Ainda assim, o documentário resulta fundamental para que se entenda a vida e a luta de Miúcha para se impor na sociedade patriarcal. Através de cartas e diários escritos por Miúcha no exterior e lidos pela atriz Silvia Buarque para o filme, e também dos áudios de entrevistas feitas com Miúcha pelos diretores, o filme perfila com sensibilidade uma mulher imersa em inferno conjugal.

Pela escrita aflitiva de Miúcha, João Gilberto é retratado como marido machista, individualista, egocêntrico e insensível aos anseios da mulher com quem se casou em 1965, como visto no filme em imagens inéditas filmadas em Super8 em Nova York (EUA). As imagens raras, aliás, valorizam o documentário.

O encantamento inicial foi se desfazendo e, aos poucos, a vida conjugal se tornou prisão da qual Miúcha custou a se libertar pelo sentimento de culpa, enfatizado de forma recorrente nos relatos da artista. A metamorfose de Miúcha para voar como mulher e cantora é o que move a maior parte do roteiro deste filme que se revela relevante por focar a vida dessa mulher que, aos 14 anos, questionou o pai ao saber que o irmão sete anos mais novo do que ela, Chico Buarque, já tinha a chave da casa – privilégio negado às irmãs do futuro cantor.

Aquarelas e desenhos da própria Miúcha ganham forma animada na tela – por obra dos animadores Guilherme Hoffmann, Julie Reed e Meton Joffily de Alencar – para ilustrar história que nada tem de lúdica, embora o documentário provoque eventuais risos quando, por exemplo, exibe entrevista de João Gilberto à TV americana. Ou quando Miúcha prega contra o casamento.

À medida que o filme avança, o espectador vai se deparando com mulher enclausurada em relação tóxica e abusiva, sendo desencorajada a se assumir cantora. “Eu cantava, João grilava. Grilou tanto que minha voz sumiu”, conta Miúcha em outro relato assombroso. Tocado longe dos olhos do marido, o violão foi a válvula de escape para a vida.

Como se sabe, o final da história foi feliz. Ao se separar de João Gilberto, Miúcha restabeleceu relação de afeto com o ex-marido e se firmou como cantora, tendo gravado dois álbuns de estúdio com ninguém menos do que Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) entre 1977 e 1979. Um feito para cantora que nunca recebeu oficialmente o devido crédito pela recorrente participação vocal no disco The best of two worlds – Stan Getz e João Gilberto (1976).

A parte final do filme prioriza a música de Miúcha, mas, em contexto frágil. O documentário exibe Miúcha cantando a salsa Buenos dias, América (1987) com o compositor da música, Pablo Milanés, sem informar que Milanés participou de importante álbum solo lançado por Miúcha em 1988 – para citar somente um exemplo da fragilidade da contextualização da carreira da artista, voz mais da MPB do que exatamente da bossa nova (o título parece ter sido dado pelo fato de o filme ter sido viabilizado com investimento feito no exterior).

Contudo, o documentário se redime por mostrar Heloísa Maria Buarque de Hollanda – a menina que ganhara do pai o livro A metamorfose (Kafka, 1915) – vivendo a própria metamorfose para sair do casulo/casamento e voar alto como cantora e mulher de bem com a vida e a música.

Miúcha com João Gilberto em Nova York (EUA), cenário de casamento que se tornou tóxico — Foto: Divulgação

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