A terra dos bravos e lar dos livres sempre foi pessimista em relação às fronteiras, sobre quem entra e quem fica de fora. Politicamente, estamos sentindo essa tensão enormemente agora. E isso sempre foi culturalmente evidente, por exemplo, no tipo de arte que nossos museus trazem pela porta.
O Museu de Arte Moderna padrão longo, mas esporádico, de colecionar arte latino-americana do século XX oferece um medidor construtivo. No início, favoreceu a arte que parecia ser vista como uma espécie de exotismo: folclórica, surreal, evidência de que ao sul da fronteira havia um terreno selvagem e pouco moderno.
Após a Segunda Guerra Mundial, com o intercâmbio cultural sendo cada vez mais usado como ferramenta diplomática, o MoMA queria mais envolvimento com a nova arte latino-americana, mas agora uma arte de um tipo que parecia ser feita por “pessoas como nós” – isto é, trabalhos que pareciam carregam evidências claras do DNA europeu, como a abstração geométrica.
Então, na década de 1970, veio a recessão global. Os mercados de arte faliram. E na confusão, os muros começaram a cair quando a mudança de permissão chamada multiculturalismo – pró-diversidade, anti-essencialista – chegou.
Cada vez mais, à medida que o episódio inicial do que às vezes é chamado de pós-modernismo recua para a história, parece ser um dos momentos mais belos e germinativos da arte do século XX. O MoMA levou muito tempo – décadas – para embarcar nisso, mas está bem adiantado para julgar por “Memórias Escolhidas: Arte Contemporânea Latino-Americana do Presente de Patricia Phelps de Cisneros e Além,” uma das coleções de museus mais emocionantes que já vi em Nova York nos últimos tempos.
Na década de 1970, Patricia Phelps de Cisneros, natural da Venezuela e curadora de longa data do MoMA, já se interessava pela arte latino-americana em um amplo espectro: arte indígena; obra do século 19 feita por europeus que viajam para lá; artefatos coloniais híbridos; e pintura e escultura modernistas. Em 2016, ela doou ao museu mais de 100 obras modernistas, e houve uma mostra. Mas já nessa altura tinha voltado as suas atenções para a nova arte e em 2019 houve uma oferta ainda maior, esta de trabalhos contemporâneos, incluindo fotografia e vídeo.
Cerca de três dezenas de exemplos, a maioria datados das últimas três décadas e complementados por empréstimos, compõem a mostra atual. E juntos refletem — e refletem criticamente — todas as categorias da arte latino-americana que desde o início a interessaram.
Por exemplo, a complexa história do colonialismo, em grande parte expurgada da abstração modernista, é trazida à tona em uma das primeiras entradas da exposição, “The Catherwood Project” do artista argentino Leandro Katz.
Na década de 1840, o artista inglês Frederick Catherwood viajou duas vezes para a América Central e lá fez desenhos das ruínas maias. Publicado como impressões, suas imagens deram ao público europeu uma primeira olhada nesses monumentos antigos e estabeleceram uma visão romantizada do “Novo Mundo” que persiste no presente do ônibus de turismo. Em sua série “Catherwood”. Katz considera a precisão dessas imagens por meio de comparações imediatas: ele fotografa a si mesmo segurando as imagens do ilustrador na frente dos monumentos maias que eles retratam. Katz observa as manipulações de Catherwood, mas também entende que ele está inevitavelmente adicionando sua própria visão distorcida do século 20 a uma história perceptiva em camadas.
A cultura indígena, crucial, mas pouco reconhecida pelo modernismo europeu, é mencionada repetidamente na mostra. Em 1996, o artista mexicano Laura Anderson Masculino passou um tempo com Povo Yanomami na Amazônia venezuelana aprendendo na floresta tropical, na prática, como eles criaram suas graciosas canoas. Em troca dessa instrução, ela os ensinou a fazer papel. Vemos os frutos da reciprocidade na mostra: em uma fotografia, que Barbata intitulou de “Auto-retrato”, de um barco esculpido à mão em pé como se tivesse vida própria; e em desenhos fluidos da fauna e da flora amazônica pelo artista Yanomami Sheroanawe Hakihiiwe, tudo feito em papel fibra artesanal.
Alguns artistas transformam a tradição em algo hábil e divertido. O artista mexicano Gabriel Kuri brinca com noções de valor, trabalho e cultura de consumo em sua imagem tecida em tear de um recibo de supermercado. O mesmo acontece com o coletivo porto-riquenho chamado “As netas de Nonó”, composta por duas irmãs (Mulowayi Iyaye Nonó e Mapenzi Chibale Nonó) que, isoladas durante a pandemia, transformaram o seu quotidiano numa espécie de piquenique caçador-coletor de regresso às origens.
O que é levado a sério é algo que a maior parte da arte ocidental mainstream não sabe mais o que fazer, mas que o multiculturalismo respeitava notavelmente: a espiritualidade. Em uma pintura de 2020 do artista dominicano Firela Báez, uma poderosa divindade feminina afro-caribenha dança e domina um mapa europeu do Oceano Atlântico do século XVI.
E em desenhos a lápis, a artista colombiana-coreana Gala Porras-Kim documenta centenas de fragmentos têxteis deixados, séculos atrás, como oferendas ao deus maia da chuva e agora preservados em um museu etnológico da Universidade de Harvard. Incluída na mostra está uma carta que a artista escreveu à diretora do museu pedindo a ela que liberasse as oferendas de sua prisão arquivística e permitisse que virassem pó como seus doadores pretendiam. Sua perecibilidade, ela argumenta, é o que os torna poderosos.
O tema da mudança e da instabilidade, aqui muitas vezes enquadrado como perda, é um dos fios condutores do programa, e complicado. Historicamente, a perda pode ser violenta, como sugere um trabalho feroz da sempre surpreendente e determinada artista performática guatemalteca Regina José Galindo. Para um trabalho de 2010 chamado “Looting”, que aborda as depredações extrativistas do colonialismo europeu em sua terra natal rica em minerais, ela pediu a um dentista na Guatemala que recolocasse oito de seus dentes com obturações feitas de ouro extraído localmente e depois pediu a um segundo dentista, na Europa, para retirar as obturações, que são expostas como arte em uma vitrine.
Vários trabalhos sobre perda são, como o dela, politicamente carregados. Um pequeno vídeo intitulado “Antropologia Negra II” de 2014 por Paulo Nazareth é um. Nela, o artista jaz semienterrado sob pilhas de crânios e ossos humanos, restos mortais de prisioneiros afro-brasileiros que encontrou guardados em um museu da polícia baiana.
Em uma fotografia de 1989 intitulada “As Duas Fridas”, os ativistas gays chilenos Francisco Casas Silva See More e Pedro Mardones Lemebel (1952-2015), posam com o peito nu e saias, seus corpos conectados por tubos intravenosos, em um riff da era da AIDS no famoso autorretrato duplo de Kahlo.
Sua foto pode ser lida como uma homenagem à parceria, artística ou afetiva, ou ambas. O mesmo pode acontecer com uma pequena escultura alegre montada a partir de uma estante de partitura, um par de tesouras de jardim e uma única rosa, dedicada a um amigo – um amante? – pelo indescritível polímata venezuelano Claudio Perna (1938-1997).
Há uma vibração memorial nesta peça, assim como em um vídeo de 2009 que foi concebido como um gesto de luto antecipado pelo artista uruguaio Alejandro César. Intitulado “Present Memory” (2010), é um retrato mudo filmado do pai de Cesarco, um médico, feito logo após ele receber o diagnóstico de câncer de pulmão terminal. Vemos o homem mais velho, com seu terno elegante e bigode extravagante, sentado impassivelmente em seu escritório e sendo visto repetidamente de vários ângulos, como se para fixar suas feições em nossas mentes. Em seguida, a câmera percorre a sala, agora vazia. Ele se foi.
Algum tom fundamental da mostra — organizada por Inés Katzenstein, curadora de arte latino-americana do MoMA e diretora do Cisneros Research Institute, e Julia Detchon, assistente de curadoria — é destilado aqui: uma espécie de choque de realidade inquieto, irônico melancolia que se sente muito diferente do utopismo muitas vezes atribuído à arte latino-americana a partir da pintura abstrata geométrica que, até recentemente, a definiu em muitas coleções de museus norte-americanos.
Na verdade, a abstração geométrica está presente, ainda que ambígua, em “Memórias Escolhidas”, na forma de mural site-specific do artista brasileiro Iran do Espírito Santo. Composto inteiramente por linhas verticais em tons de cinza sutilmente variados, a pintura é difícil de ver primeiro, como uma sombra passageira ou uma mancha escura. Parece tanto sujar a parede branca da galeria quanto dissolvê-la, ser um auxílio à meditação ou um erro. Intitulado “En Passant” e encomendado para a ocasião, ele desaparecerá fisicamente quando o show terminar, mas permanecerá vívido como uma ideia, como muito do resto do que está aqui.
Memórias escolhidas: arte latino-americana contemporânea do presente de Patricia Phelps de Cisneros e além
Até 9 de setembro, Museu de Arte Moderna, 11 East 53rd Street, (212) 708-9400; moma.org.