Zé Ramalho se revigora, sem sair do lugar, na grande viagem mística do álbum ‘Ateu psicodélico’ | Blog do Mauro Ferreira

Título: Ateu psicodélico

Edição: Avohai Music / Discobertas

Cotação: ★ ★ ★ ★ ★

♪ “Esse disco é para as cabeças que viajam sem sair do lugar”, indica Zé Ramalho no breve texto que escreveu para o encarte da edição em CD do álbum autoral Ateu psicodélico.

Disco que apresenta 12 músicas inéditas da lavra solitária do compositor paraibano, gravadas de abril a julho deste ano de 2022 com produção musical do guitarrista Robertinho de Recife, Ateu psicodélico reconecta Zé Ramalho ao movimento musical que agitou a cena underground do Recife (PE) ao longo dos anos 1970, pelo “turbilhão de imagens” – expressão usada pelo próprio Ramalho no já mencionado texto do encarte do CD – que saltam das letras viajantes escritas pelo artista, todas nascidas no isolamento social imposto pela pandemia de covid-19 entre 2020 e 2021.

Foi na cena psicodélica recifense que, em 1973, Marconi Notari gravou a primeira música de Zé Ramalho a sair em disco, Made in PB, rock letrado por Ramalho a partir da melodia de Notari.

Decorridos 49 anos desse registro fonográfico feito para o álbum No sub reino dos metazoários (1973), Zé Ramalho já é um ídolo nacional, tendo constituído ele próprio um movimento solitário na rota migratória que deslocou artistas do nordeste para o eixo Rio-São Paulo no decorrer da década de 1970.

Após o lendário álbum duplo Paêbirú – Caminho da montanha do sol (1975), gravado com o cantor, compositor e poeta pernambucano Lula Côrtes (1949 – 2011), Ramalho foi se desgarrando paulatinamente da turma em busca de estilo próprio, lapidado com mix original de folk, rock e gêneros musicais nordestinos – tudo envolvido em clima apocalíptico potencializado por voz cavernosa que se conservou viçosa, como atesta o canto das 12 músicas do álbum Ateu psicodélico.

Antecedido pelo single As onzes palavras, que apresentou em agosto música de contornos épicos, sinalizando a inspiração da safra autoral de compositor que estava sem apresentar repertório inédito desde o álbum Sinais dos tempos (2012), o disco Ateu psicodélico se confirma vigoroso no conjunto da obra.

“Não vou deixar minha estrela se quebrar”, avisa Ramalho ao seguir a bela toada de Olhar entorpecido com fé na vida, a ponto de encarar a morte sem medo e angústia nos versos de O gosto fino das sensações.

Mesmo que o ateu psicodélico professe a fé na música do nordeste do Brasil, recrutando o sanfoneiro Waldonys para dar o tom forrozeiro do galope Martelo Armagedon, faixa também harmonizada com o ponteio da viola de Robertinho de Recife, o disco cruza as fronteiras do país em viagem lisérgica que, em A estrada de tijolos amarelos, alude explicitamente ao universo do filme O mágico de Oz (Estados Unidos, 1939).

“Eu já cantei com Raul Seixas / Já cantei com Gonzagão / Cantei com o Sepultura / E muito mais vou cantar / Eu vou viajar”, alardeia Ramalho, demolindo muros, no pulso cordelista de Repentista Marvel, música que ostenta a guitarra de Andreas Kisser, peso-pesado do universo roqueiro.

Zé Ramalho alude ao universo do filme ‘O mágico de Oz’ na música ‘A estrada de tijolos amarelos’, uma das 12 faixas do álbum ‘Ateu psicodélico’ — Foto: Leo Aversa / Divulgação

“… [essas músicas] São as ondas que desceram do inconsciente tão distante e escuro que habita a minha cabeça”, caracteriza Ramalho no texto do encarte do CD. Das ondas que quebram vagarosas em Beira mar, a ressurreição, faixa que roça o arrebatamento ao remeter à música dos primórdios do artista, Beira mar (1979), o disco segue nos movimentos sensoriais e sexuais de Cópula, marcados pelo pulso hipnótico da bateria de Eduardo Constant.

Introduzida por cordas de aura sinfônica, a faixa O diagrama da alma dourada corrobora o fato de Ateu psicodélico ser disco forjado na expansão da consciência mística do artista. O turbilhão de imagens é despejado ao longo das 12 faixas com enxurrada de referências e sons que mixam rock, repente, música oriental e os ecos dos cantadores nordestinos que reverberam entre evocações de forças da natureza como os ventos e os mares.

Tudo isso fica nítido quando se ouve a balada Sextilhas filosóficas ao fim desse álbum tão cheio de vida e sentidos em que o profeta do sertão paraibano vislumbra o desconhecido em O que mundo não sabe explicar com a sabedoria angariada em quase 73 anos de existência iniciada em 3 de outubro de 1949 na interiorana cidade Brejo do cruz (PB).

Ainda que ignore fronteiras na rota que ecoa o rock universal de bandas como Beatles, a viagem de Ateu psicodélico gravita em torno da nação nordestina – e é sintomático que o sanfoneiro cearense Waldonys marque dupla presença no disco, garantindo o pulso frenético de Amanhecer tantra.

E o fato é que, valorizando com a produção musical de Robertinho de Recife o jorro de consciência e inspiração que gerou as 12 músicas inéditas, Zé Ramalho apresenta álbum já antológico que evolui em alto nível da primeira a última faixa, servindo banquete de signos místicos.

Lançado em 9 de setembro, em parceria dos selos Avohai Music (de Ramalho) e Discobertas (do produtor e pesquisador musical Marcelo Fróes), Ateu psicodélico é disco capaz de converter qualquer cristão que tenha fé no poder regenerador da música.

Na grande viagem por temas recorrentes no cancioneiro desse messias de Brejo do Cruz, Zé Ramalho vai longe sem sair do lugar a que pertence desde 1978.

Zé Ramalho lança o álbum ‘Ateu psicodélico’, gravado com produção musical de Robertinho de Recife — Foto: Leo Aversa / Divulgação

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