ROMA – A vida dos judeus na Florença do século XVII era bastante restrita. Eles foram confinados a um gueto, uma área apertada do tamanho de um campo de futebol que abrigava cerca de 200 famílias.
Eles podiam trabalhar apenas em certas profissões, como catadores de lixo, e não tinham permissão para ingressar em guildas ou corporações profissionais, o que abriria as portas para áreas como a arquitetura. Suas interações com os cristãos eram estritamente regulamentadas.
É por isso que os estudiosos estão intrigados com a vida do pintor judeu Jona Ostiglio, um membro de carteirinha de uma prestigiosa academia fundada pelo famoso artista Giorgio Vasari. Pintor da corte dos Médici, a existência de Ostiglio era praticamente desconhecida até agora.
“É uma descoberta e tanto”, disse Eike Schmidt, diretor da Galeria Uffizi, na quarta-feira, antes de uma palestra que buscava extrair Ostiglio e sua obra do esquecimento histórico. Várias peças atribuídas a Ostiglio estão na coleção mundialmente famosa do Uffizi. “Não sabíamos praticamente nada sobre esse artista”, acrescentou Schmidt, “um artista sem obras. ”
Ostiglio, que se acredita ter nascido entre 1620 e 1630 e morrido depois de 1695, era um pintor profissional trabalhando em Florença para algumas das famílias mais poderosas da cidade italiana em uma época em que os judeus normalmente não tinham tais oportunidades.
“Ele era uma exceção às regras ou era mais comum na época do que sabemos – essa é a questão que permanece em aberto”, disse Piergabriele Mancuso, diretor do programa de estudos judaicos do Medici Archive Project, que apresentou suas descobertas no Uffizi na quarta-feira.
O professor Mancuso conheceu Ostiglio enquanto pesquisava uma exposição sobre o gueto judeu de Florença, que será apresentada no Uffizi no final do ano que vem. Ele montou um perfil de Ostiglio a partir de fontes literárias e de arquivo.
O artista começou a pintar relativamente tarde naquela época, a partir dos 30 anos. Autodidata, copiava tão bem os grandes mestres que um cronista disse ser impossível distinguir suas cópias dos originais. Ele estava associado a um movimentado estúdio de pintura em Florença e causou algum escândalo por causa de um caso de amor atormentado que teve com uma jovem e rica viúva cristã que quase lhe custou a vida nas mãos de um monge. (É uma longa história.)
“A ideia que temos é de um judeu único, bastante familiarizado com o ambiente cristão e sem medo de se distanciar das leis rabínicas que o fariam se comportar de maneira mais ortodoxa”, disse o professor Mancuso. “Seu comportamento estava fora da sociedade judaica e cristã da época.”
Comparando descrições detalhadas de suas obras com pinturas sinalizadas por Maria Sframeli, historiadora de arte e curadora da Galeria Uffizi, o professor Mancuso conseguiu rastrear oito obras que acredita ter sido pintadas por Ostiglio. Eles incluem naturezas-mortas de peixes e várias pinturas de paisagens.
“Estou tão feliz que este pintor foi capaz de emergir”, disse Sframeli. “Agora trouxemos à luz algumas de suas obras.”
Ostiglio também pintou a enorme árvore genealógica da aristocrática família Mannelli de Florença que está pendurada na sala de leitura dos arquivos do estado da cidade, uma confirmação de que ele trabalhava para os nobres clãs de Florença “e que era apreciado”, disse o professor Mancuso.
Estudiosos na Itália retrataram a pesquisa sobre Ostiglio como historicamente significativa.
“Os judeus não tinham permissão para se tornar ourives ou pintores ou fazer parte de qualquer guilda, por isso é extraordinário”, disse Andreina Contessa, diretora do museu histórico do Castelo e Parque Miramare em Trieste e ex-curadora-chefe do Museu Nahon de Arte Judaica Italiana em Jerusalém
Silvana Greco, professora de sociologia do judaísmo na Freie Universität Berlin e co-curadora de uma exposição de 2019 sobre Judeus e arte renascentistadisse que a história de Ostiglio destacou as interações que existiam entre judeus e cristãos e a importância da cultura judaica em várias formas artísticas, “incluindo a pintura”.
“Mesmo que a vida do mundo judeu e católico esteja dividida, pode haver trocas construtivas”, disse ela.
O professor Mancuso disse que Ostiglio não era o único artista judeu trabalhando na Itália na época. Mas por causa das restrições, os judeus foram relegados a tarefas mais artesanais. Já Ostiglio era pintor profissional e reconhecido como tal.
“A regra era que eles não podiam entrar em guildas – não que eles não pudessem trabalhar; eles poderiam, mas trabalharam sem assinar seus nomes”, disse a Sra. Contessa, citando os escribas que trabalharam em manuscritos iluminados. (As guildas eram associações profissionais para ofícios.)
O professor Mancuso citou escultores judeus trabalhando tanto em madeira quanto em mármore. Mas eles eram considerados artesãos, não artistas, disse ele.
O professor Mancuso disse que, até o século 20, Ostiglio era o único judeu membro da prestigiada Academia de Belas Artes, fundada por Vasari e patrocinada pelos grão-duques Medici.
“A academia representava o mais alto nível da arte institucional e dos Medici, então ser membro era extremamente importante”, disse Giulio Busi, professor de estudos judaicos da Universidade de Berlim.
Novas pesquisas examinarão os arquivos de outras famílias florentinas para ver se surgem outras obras do artista. “Levará tempo, mas não é impossível”, disse o professor Mancuso.
“Talvez alguém tenha uma pintura de Jona Ostiglio em casa”, brincou Schmidt, do Uffizi.