Santa Edwiges: a nobre que se tornou santa porque pagava dívidas de quem não podia | Mundo

Conta-se que isso tenha ocorrido quando ela já era uma senhora viúva e havia decidido morar em um mosteiro — em Trzebnica, atual Polônia. Habituada a praticar obras de caridade, Edwiges de Andechs (1174-1243) foi visitar um presídio e surpreendeu-se ao saber que boa parte dos detidos ali havia perdido a liberdade pelo mesmo motivo: incapacidade de pagar dívidas.

Ela fez disso uma missão. Passou a saldar os calotes em nome dos presidiários e, em alguns casos, negociar o perdão com os credores. Assim, entendia ela, aqueles homens poderiam recomeçar suas vidas, sem deixar desamparadas suas famílias. Ciente de que apenas isso não seria suficiente, Edwiges também ajudava esses ex-prisioneiros a conseguir emprego.

Canonizada em 1267 pelo Papa Clemente 4º (1190-1268), Santa Edwiges tornou-se a padroeira dos pobres e endividados. “Adquiriu fama como protetora dos endividados porque, quando algumas pessoas estavam nessa situação, ou presos, não podendo pagar os débitos financeiros que haviam contraído, ela saldava as dívidas com seu próprio dinheiro, ou obtinha o perdão para os devedores”, ressalta o padre Antônio Lúcio da Silva Lima, autor do livro Santa Edwiges – Novena (Paulus Editora).

Ao que tudo indica, esse comportamento de auxiliar financeiramente os pobres, embora intensificado depois dessa visita ao presídio, já era parte de seu dia a dia. De origem nobre, ela se casou aos 12 anos com Henrique 1º, o Barbudo (1165-1238), príncipe da Silésia — hoje parte da Polônia. Isso fez dela uma mulher poderosa. Mas os relatos da época indicam que ela colocava seus bens materiais à disposição de quem mais precisasse.

“Santa Edwiges tornou-se conhecida no mundo inteiro como a mãe dos pobres e padroeira dos endividados, pois a ninguém ela negou auxílio e proteção. É invocada como a padroeira dos endividados em razão da benevolência com que tratava os súditos, que não tinham como pagar as obrigações a ela devidas”, comenta o escritor e teólogo J. Alves, autor do livro Santa Edwiges — Novena e Biografia (Editora Paulinas).

“Tantas foram as dívidas perdoadas que o capelão, administrador de seus bens, um dia reclamou dizendo que, se continuasse aquela situação, pouco sobraria para seus servidores. Santa Edwiges disse-lhe para não se preocupar, pois para as pessoas consagradas como ele, Deus haveria de prover”, conta Alves.

“Ela própria acompanhava os acertos de contas dos súditos, determinando que fossem tratados com benevolência todos os que se achavam em desespero, por não conseguir pagar as dívidas.”

Santa Edwiges, em ilustração atribuída a Jan Matejko, feita no século 19 — Foto: BBC

Nascida em Andechs, na Baviera — atualmente, parte da Alemanha —, Edwiges era filha de um duque. “Sua infância e pré-adolescência se deu em ambiente de luxo e riqueza”, pontua José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará.

Segundo padre Lima, “desde pequena” ela dava “sinais de seu despego material”.

Do casamento com o príncipe Henrique 1º, nasceram sete filhos — ou seis, conforme cada biógrafo. “Humilde, inteligente, esposa dedicada e temente a Deus, ela cuidou da formação religiosa dos filhos e do marido”, acrescenta Lira.

“Conta que ela teve forte influência nas decisões políticas tomadas pelo marido, interferindo na elaboração de leis mais justas para o povo e, junto com ele, construiu igrejas, mosteiros, hospitais, conventos e escolas.”

Essa postura religiosa e social teria sido praticada pelos nobres enquanto política a partir do oitavo ano do casamento deles. “Edwiges sentiu o chamado de Jesus e, após conversar com o marido, os dois decidiram seguir o Senhor e construir hospitais, mosteiros, escolas e igrejas”, diz o padre Lima.

J. Alves ressalta que, mesmo sendo “riquíssima e cheia de privilégios”, Edwiges “despojou-se de seus bens e viveu como se nada possuísse”. “Educada na disciplina monástica, distinguiu-se pelo amor à oração, à leitura da Bíblia e à eucaristia. Submetia-se, em segredo, a rigorosas penitências, mortificando o corpo com frequentes jejuns e cilícios [objetos para incomodar a pele] de crina de cavalo sob as vestes.”

Quando ela tinha 32 anos, atendendo ao que acreditava ser uma orientação divina, decidiu fazer votos de castidade. “Obteve o respeito do marido”, frisa Lira. “O voto teria sido feito diante de um bispo.”

De acordo com Alves, a decisão foi tomada em comum acordo pelo casal. “Passaram a morar em residências separadas e só se encontravam por ocasião de atos políticos e sociais importantes. Henrique, a exemplo dela, adotou um estilo de vida simples e austero, vestindo-se como monge, despojando-se do ouro. Deixou a barba crescer, à moda dos convertidos, sendo por isso chamado de Henrique, o Barbudo”, comenta ele.

“Em toda a sua vida, Edwiges praticou a caridade. Quando ficou viúva, em 1238, foi morar no mosteiro de Trzebnica, acatando os votos da vida religiosa. Dedicando-se a Deus, à oração e aos mais necessitados, trilhando a estrada que a levou ao paraíso e a constituiu padroeira dos pobres, da família e dos endividados”, diz Lira.

“[No mosteiro], continuou a servir os carentes e enfermos”, recorda Lima. “Uma vida dedicada à caridade. Ela tinha o dom da profecia e [praticava] milagres em enfermos. Era conhecida por ajudar os mais pobre se carentes, reconhecida por quitar dívidas de pessoas que recebiam sua assistência.”

A casa religiosa, mantida por monjas da ordem cisterciense, havia sido fundada graças ao empenho dela mesma junto ao marido. Segundo consta o texto do Martirológio Romano, na sinopse biográfica que justifica sua canonização, na ocasião a abadessa era uma de suas filhas, chamada Gertrudes.

Alves conta que o mosteiro, o primeiro feminino da região, foi desde o princípio transformado por Edwiges em um lugar “de caridade, de esmola e de proteção aos pobres”. “Ela não apenas sustentava as monjas, mas ali abrigava numerosos religiosos, doentes, viúvas e crianças desamparadas”, afirma o teólogo.

Capa de livro sobre Santa Edwiges, publicado pela editora Paulus — Foto: Divulgação/Ed. Paulus

Motivações de sua popularidade

A devoção a Santa Edwiges foi trazida ao Brasil pela colonização portuguesa.

“Quando o Brasil foi ‘descoberto’, ela tinha pouco mais de 230 anos de canonizada. A divulgação dos santos católicos era muito forte naquela época e Portugal era extremamente católico, logo a devoção deve ter vindo com os primeiros colonizadores e se popularizado por conta do testemunho de vida dela e da proteção aos endividados”, analisa Lira.

Aqui, ela se tornou uma das mais famosas santas do catolicismo. Lira acredita que isso se deu devido “ao forte apelo” por conta de sua “proteção aos endividados”.

Alves observa que a devoção a ela, dentre os católicos brasileiros, cresce “em todas as classes sociais”. Como ela é celebrada em 16 de outubro, é comum que sempre no dia 16 de cada mês, “os devotos depositam a seus pés”, ou seja, aos pés das imagens alusivas a ela no interior de igrejas, “pedidos e agradecimentos pelas graças alcançadas”.

“Encontram nela o carinho e a proteção da mãe que, no desespero, acolhe o filho”, comenta o teólogo.

“São numerosos os testemunhos de pessoas que, na aflição de não conseguir pagar as próprias dívidas, a ela recorreram e, prontamente, foram atendidos”, acredita Alves. “Infelizmente, em um país em que o número dos endividados só tende a aumentar a cada dia, é natural que os devotos recorram àquela que passou a vida inteira ajudando os pobres e visitando os prisioneiros que não tinham como pagar suas dívidas.”

Padre Lima destaca que, em “tempos difíceis na economia”, a santa “continua sendo invocada com muita fé pelos devotos”. “Ela que, sendo de família nobre, fez-se pobre para assistir aos necessitados, não deixa de ser uma referência para tantas pessoas que suplicam sua proteção e ajuda”, destaca ele.

“Basta sairmos de nossas casas, sobretudo nas grandes cidades, e enxergarmos um cenário de muita miséria: tropeçamos em pessoas que vivem nas ruas, nas praças, debaixo dos viadutos, em tendas… Elas não têm com quem contar, a não ser suplicar aos céus, por intercessão de Santa Edwiges, para que surja uma ‘luz no fim do túnel’ para terem de volta a sua dignidade de filhos e filhas de Deus resgatada”, afirma Lima.

O cenário de pobreza favorece esse tipo de devoção, sobretudo quando o poder público não cumpre o necessário para dar condições dignas de vida aos mais pobres.

“Os nossos políticos, ainda mais agora em tempo de eleição, falam bonito e prometem o impossível. Na verdade, os despossuídos de vida e dignidade continuam povoando as ruas por não terem as condições mínimas que a Constituição prescreve e lhes garante”, diz ele. “Quando não se pode contar com os seus governantes e nem com o poder público, recorre-se aos céus. E, especificamente, a Santa Edwiges.”

Na opinião dos especialistas, a mensagem que a vida de Santa Edwiges deixa para o mundo contemporâneo é a de que todos podem fazer o bem. E, assim, ajudar a transformar o mundo.

“Ela nos ensina que devemos ter um olhar compassivo e misericordioso para com todas as pessoas, sobretudo aquelas que perderam tudo, também sua dignidade como ser humano, e ajudá-las concretamente”, pontua Lima. “Apenas comover-se com a realidade de miséria, pobreza e endividamento que assolam o nosso Brasil não vai resolver a questão. São necessárias políticas concretas para ajudar essa massa de anônimos e invisíveis da nossa sociedade.”

“Santa Edwiges nos ensina, com a própria vida, a passarmos das boas intenções e bons propósitos a atitudes concretas”, acrescenta o padre. “Ela, sendo nobre, não desprezou os pobres e necessitados. Servia-se dos seus bens materiais e dinheiro para aliviar o sofrimento das pessoas que estavam sobrevivendo à margem da vida. Ela nos pede para deixarmos de lado os nossos palavrórios vazios e inúteis e partirmos para ação concreta.”

Para o professor Lira, a vida dessa santa é a prova de que “ser da nobreza e rica não impede uma pessoa de praticar a caridade, desenvolver o amor a Deus e a ele confiar sua existência auxiliando àquelas que mais necessitam material e espiritualmente”.

“A mensagem de Santa Edwiges vai além das preocupações financeiras, do endividamento monetário que, durante algum tempo, podem nos tirar o sono e nos fazer entrar em desespero”, argumenta Alves.

“Sua vida nos ensina que a dívida maior a ser resgata em nossa vida é a do amor a Deus e aos nossos irmãos e irmãs. Mostra que cada um de nós é devedor do amor e da misericórdia de Deus. Todos temos uma dívida impagável de amor para com Jesus que, por amor, deu sua vida por nós e pelo próximo. Temos também uma imensa dívida de amor para com o próximo, a quem podemos amar e por ele ser amados.”

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