Rebeldes do Tigré entregam armas ao exército da Etiópia, mas tropas da Eritreia preocupam


Devoluções são etapa do acordo de paz firmado em novembro de 2022. Conflito durou dois anos e causou a morte de mais de 500 mil pessoas. A capital do Tigré, Mekele, foi duramente atacada durante os principais conflitos entre o governo etíope e forças do Tigréforces. A foto mostra um ataque aéreo em 20 de outubro de 2021.
AP
As tropas do Tigré começaram a entregar suas armas ao exército etíope em mais uma etapa do acordo de paz firmado em novembro, depois de um sangrento conflito que durou dois anos e, estima-se, causou a morte de mais de 500 mil pessoas. A guerra, que começou antes da invasão à Ucrânia, mas não chamou tanta atenção do ocidente, chegou a ser considerada um dos piores desastres humanitários recentes no mundo. Os principais autores do conflito são acusados de crimes contra a humanidade, incluindo violência sexual.
Apesar dos avanços visíveis nos últimos dois meses, os sentimentos entre os etíopes sobre o acordo de paz vão da esperança à desconfiança. A guerra acabou envolvendo também a Eritreia, que não participou das conversas lideradas pela União Africana sobre o fim das hostilidades. O país vizinho cruzou a fronteira para apoiar as tropas federais etíopes quando o conflito estava em andamento e não saiu totalmente quando ele oficialmente acabou.
O envolvimento “pesado” da Eritreia na violência no norte da Etiópia ainda preocupa a Christian Solidarity Worldwide (CSW). Um comunicado divulgado pela fundação de direitos humanos destacou que, “embora alguns relatórios recentes tenham indicado que as tropas eritreias se retiraram de cidades como Axum e Shire, outros detalham violações em andamento, incluindo o assassinato de dois jovens, em Axum, em 3 de janeiro”. 
O documento ainda fala de imagens que circulam na Etiópia com tropas que seriam da Eritreia em ruas de Shire.
“Apelamos à União Africana e ao restante da comunidade internacional para garantir a retirada imediata das tropas eritreias da Etiópia, inclusive formulando e iniciando sanções adicionais direcionadas e um embargo abrangente de armas, se considerado necessário”, disse Khataza Gondwe, líder de equipe para África e Oriente Médio na CSW.
Esforço internacional
As ministras das Relações Exteriores da França, Catherine Colonna, e da Alemanha, Annalena Baerbock, estão na Etiópia para uma visita de dois dias. A implementação do acordo de paz no norte do país africano está na pauta das reuniões. 
Na programação foram incluídos encontros com autoridades locais do alto escalão, como o primeiro-ministro, Abiy Ahmed, a presidente Sahle-Work Zewde e o vice-primeiro-ministro e também ministro das Relações Exteriores da Etiópia, Demeke Mekonen, além de visita à sede da União Africana. 
Em um evento na embaixada da França em Adis Abeba, na tarde desta sexta-feira (13), serão assinados dois acordos firmados pela Agência Francesa de Desenvolvimento no valor de 28 milhões de euros para projetos de reconstrução das áreas destruídas durante a guerra no norte do país. 
Um deles investirá na reabilitação da rede elétrica em três (das 13) regiões administrativas da Etiópia: Tigré, Amhara e Afar, que acabaram afetadas pelos confrontos. Estima-se que 12 milhões de pessoas nessas zonas sejam beneficiadas pelo investimento. O outro projeto, em parceria com a União Europeia, focará na segurança alimentar, apoiando as atividades agrícolas nas três regiões. Isso deve beneficiar 400 mil agricultores, incluindo mulheres, vítimas do conflito.
A UE já condenou veementemente os abusos cometidos no norte da Etiópia e pediu o acesso das organizações de ajuda humanitárias à região então isolada. O Parlamento Europeu adotou uma resolução sobre a situação dos direitos humanos no Tigré, considerando o uso da fome como arma de guerra.
As duas ministras europeias vieram para a Etiópia na semana em que o ministro das Relações Exteriores da China, Qin Gang, visita cinco países africanos. No cargo desde dezembro, ele também esteve em Adis Abeba nos últimos dias. Gang se encontrou com o primeiro-ministro etíope e também com o presidente da Comissão da União Africana, Moussa Faki Mahamat. 
Sem muitos detalhes divulgados, fontes da União Africana disseram que acordos na área de segurança também foram firmados. Em uma coletiva de imprensa ao lado de Faki na futura sede do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, sigla em inglês), o ministro chinês defendeu que o continente africano tenha assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, que tem ao todo 15 membros, mas apenas cinco são permanentes e possuem poder de veto: Estados Unidos, Rússia, China, França e Grã-Bretanha. Boa parte dos assuntos discutidos no conselho envolvem o continente africano.
“A África deve ser um grande palco para a cooperação internacional, não uma arena para a competição de grandes países”, afirmou o ministro chinês.
O continente africano tem sido, há anos, o primeiro destino internacional de quem ocupa este cargo na China. A imponente nova sede do CDC está sendo construída pela China, como foi a da União Africana.
Os Estados Unidos também tiveram um papel importante nas conversas sobre o fim da guerra no norte da Etiópia, depois de terem retirado o país africano do AGOA, programa comercial que visa estabelecer laços comerciais mais fortes entre os Estados Unidos e a África subsaariana. A decisão de Washington foi tomada exatamente por causa das “graves violações dos direitos humanos internacionalmente reconhecidas, perpetradas pelo governo da Etiópia e outras partes em meio ao crescente conflito no norte da Etiópia”.
O presidente da Comissão da União Africana e o ministro das Relações Exteriores da China em coletiva de imprensa na quarta-feira em Adis Abeba, Etiópia.
Vinícius Assis/RFI
Conflito
Em novembro de 2020, o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, enviou tropas à região do Tigré para remover do poder o partido governante da região que fica ao norte, o TPLF (sigla em inglês para Frente Popular de Libertação do Tigré), alegando que forças locais atacaram uma base militar federal.
A guerra foi citada no relatório World Report 2023, da Human Rights Watch, que analisa práticas de direitos humanos em cerca de 100 países. De acordo com o documento, em pelo menos 15 conflitos armados, incluindo na Etiópia, forças governamentais ou grupos armados não estatais se envolveram em abusos contra civis. 
“Parte significativa da população tigrínia permanece deslocada e sem acesso à assistência humanitária desesperadamente necessária”, afirma o documento.
Até antes do início desta guerra seis milhões de pessoas viviam nesta região da Etiópia, que oficialmente tem a segunda maior população do continente africano, com cerca de 120 milhões de habitantes.
Volta ao normal lenta
O governo da Etiópia ainda não autorizou a ida de jornalistas ao Tigré, onde pelo menos parte da população está recebendo ajuda alimentar e suprimentos médicos, de acordo com o autoridades e organizações humanitárias. Os serviços de telefonia e internet, suspensos durante a guerra, foram restabelecidos. O sistema bancário regional também foi reconectado à rede nacional, com saques limitados.
A Ethiopian Airlines retomou voos de Adis Abeba para duas cidades na região norte. Trabalhadores de organizações humanitárias continuam indo para Mekele em um avião pequeno da ONU que opera duas vezes por semana. A lista de passageiros precisa ser aprovada pelo governo previamente e quem embarca não pode levar mais de 10 mil birr, moeda local, o equivalente a cerca de mil reais. 
“Isso é muito pouco, por exemplo, se eu tiver que ficar lá em uma missão que vai durar duas semanas. Tudo está muito caro em Mekele”, disse uma trabalhadora humanitária sob condição de anonimato.
Desde que a região foi isolada, produtos como combustível têm sido vendidos no Tigré no mercado clandestino a preços inflacionados.
A desconfiança com o que pode acontecer ainda faz com que etíopes estejam receosos e evitem dar entrevistas. Uma habitante do Tigré que vive em outro país africano contou à RFI que conseguiu falar com a família por telefone, depois de dois anos sem sequer saber se os parentes estavam vivos. 
“Eles estão bem”, disse, mas revelou que o pai está entre as milhões de pessoas que tiveram que fugir das áreas onde viviam para sobreviver e hoje estão em abrigos no país ou no Sudão. Na curta troca de mensagens ela não esclareceu se sabe o paradeiro do pai. “Espero que ele se reúna em breve com o resto (da família)”, escreveu.

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