Quem foi ‘Lady Edison’, a inventora autodidata que ganhou fama criando objetos para o cotidiano | Ciência e Saúde

Autodidata, com uma grande visão inovadora e confiante nos negócios, Beulah Louise Henry foi uma das inventoras mais prolíficas do século 20 — com 110 invenções e 49 patentes.

Suas máquinas de escrever, brinquedos, máquinas de costura sem bobinas e utensílios femininos fizeram de Henry uma figura famosa e querida nos Estados Unidos.

Sua grande imaginação e a diversidade de suas criações valeram a ela o apelido de “Lady Edison”, em analogia ao famoso inventor americano Thomas Alva Edison (1847-1931), responsável por mais de mil patentes ao longo da vida.

Infância na Carolina do Norte

Nascida em 28 de setembro de 1887, no seio de uma família da Carolina do Norte, Henry passou sua infância em um ambiente cultural, repleto de arte.

A mãe de Henry era descendente direta de Patrick Henry (1736-1799), um dos pais fundadores dos Estados Unidos. — Foto: Getty Images via BBC

Desde pequena, contou com o apoio dos pais — o advogado e orador Walter Henry e a dona de casa Beulah Holden, que fazia parte da elite política do Estado.

Na Carolina do Norte, Henry estudou na Escola Presbiteriana e no Elizabeth College. E, desde criança, ela já inventava. Aos nove anos, criou seu primeiro protótipo: um cinto com apoio para papel, depois de ter visto um homem com dificuldade para ler as notícias e carregar suas compras ao mesmo tempo.

Da mesma forma que seus inventos posteriores, os primeiros protótipos de Henry eram produtos da sua observação e da resolução de problemas.

Ela conseguiu sua primeira patente em 1912, com 25 anos, para uma máquina de fazer sorvetes que permitia fabricá-los mais rápido com um uso mínimo de gelo — um produto escasso quando ainda não havia congeladores —, graças a uma câmara de congelamento rodeada por uma estrutura isolante.

O aparelho podia funcionar manualmente ou com um motor, dependendo se havia ou não eletricidade disponível (a energia elétrica ainda era uma novidade), e substituía o refrigerador de água.

“Esta primeira patente refletia todas as características das invenções de Beulah Louise Henry: versatilidade, eficiência, economia e facilidade de uso. Estas qualidades fariam com que seus protótipos se destacassem entre os fabricantes e varejistas nas décadas seguintes”, escreveu o Escritório de Marcas e Patentes dos Estados Unidos (USPTO, na sigla em inglês) em um perfil de Henry no site da organização.

Um ano depois, ela registrou uma bolsa de mão com revestimentos intercambiáveis para que pudesse ser usada combinando com roupas de diferentes tons. Com isso, Henry queria resolver o problema enfrentado por muitas mulheres da época, na hora de combinar a roupa com a bolsa.

A essa patente, seguiu-se outra, de um guarda-chuva adaptado para que fosse dobrado, ocupando pouco espaço. Este mesmo artigo foi posteriormente modificado para também incluir um revestimento de tecido que permitisse combinar o guarda-chuva com a roupa.

“A inventora afirmava que tinha na mente uma imagem completa de cada produto finalizado, antes de começar a difícil tarefa de descrever sua ideia com clareza suficiente para permitir que um fabricante reproduzisse cada objeto da forma como ela o imaginava”, destaca o Salão da Fama dos Inventores Nacionais dos Estados Unidos, no qual Henry foi inscrita em 2006.

Convencendo os fabricantes

O sucesso comercial demorou a chegar para Henry.

De acordo com dados do USPTO, não há indicações de que a máquina de sorvetes tenha dado dinheiro à inventora — e o guarda-chuva com revestimentos intercambiáveis para combinar com a roupa das mulheres também parecia seguir o mesmo caminho. Os fabricantes e vendedores de Memphis, no estado americano do Tennessee, onde a família havia passado a morar, não mostravam interesse.

Para apoiar a filha na carreira de inventora, a família se mudou para Nova York, onde acreditavam que haveria mais oportunidades de abrir caminho no difícil mundo das patentes, especialmente para uma mulher.

“Ao chegar lá, Henry fez intermináveis visitas aos escritórios dos fabricantes de guarda-chuvas e cansativas caminhadas subindo lances de escada imundos até as oficinas de diversos fabricantes, tentando convencer uma indústria dominada por homens sobre o potencial da sua ideia”, afirma o USPTO.

Sua tenacidade a levou a seguir insistindo na conveniência do seu guarda-chuva, até que ela mesma decidiu criar seu próprio modelo. Com o protótipo em mãos, ela voltou a visitar um dos fabricantes que, assim que botou o olho nele, concordou que poderia ser fabricado.

Em Nova York, ela tinha acesso rápido a fabricantes, advogados de patentes e varejistas, o que foi muito importante para alavancar sua carreira como inventora. — Foto: Getty Images via BBC

O guarda-chuva de Henry foi um grande sucesso comercial, e Nova York passou a ser sua residência permanente. Ela investiu o dinheiro que ganhou em um laboratório para transformar ideias em realidade com a ajuda de mecânicos, artesãos e maquetistas.

Henry conseguia visualizar o que desejava fabricar e explicar o conceito aos engenheiros e fabricantes, que então construíam os produtos.

“Não estou certa se é um inconveniente ou uma vantagem desconhecer tanto a mecânica como eu, que não conheço os termos mecânicos e receio que dificulto muito as coisas para os ilustradores a quem explico minhas ideias — mas, nas fábricas onde sou conhecida, eles são extremamente pacientes comigo porque parecem ter muita fé nos meus inventos”, reconheceu a própria Henry.

Solteira e economicamente independente, ela se tornou uma das chamadas “novas mulheres” da sociedade, um arquétipo feminino originado na década de 1890 que ganhou importância após a Primeira Guerra Mundial.

“Ela trabalhava até altas horas da noite, dançava até altas horas da noite e pouco se importava com as preocupações da época de sua mãe, quando o lugar ideal da mulher de classe média era sua casa e não ficar à vista das pessoas”, afirma o USPTO.

Na maior parte dos casos, a nova mulher era mais uma fantasia do que realidade nos anos 1920, quando os homens seguiam dominando a política, a indústria e a cultura americana. Mas Henry era de verdade: uma inventora de renome na cidade grande, que conseguia viver da concessão de licenças sobre suas patentes, fruto da sua excepcional criatividade.

Brinquedos para crianças

Em 1924 e 1925, Henry patenteou melhorias do seu guarda-chuva e depois decidiu se concentrar em um novo campo de pesquisa que a deixaria famosa: brinquedos para crianças.

Sua primeira solicitação de patente para uma tecnologia relacionada a brinquedos foi feita no fim de 1925. Era uma estrutura interna de molas, projetada para fazer com que as extremidades dos bichos de pelúcia voltassem para sua posição original, depois que a criança os dobrasse em diferentes posições.

Henry não tinha filhos, de forma que se inspirou nos parques infantis de Nova York e nas suas lembranças da infância.

Ilustração do brinquedo ‘rádio boneca’, uma das criações da inventora norte-americana Lady Edison. — Foto: Getty Images via BBC

Ela conseguiu patentear, entre outros produtos, um “rádio-boneca”, que incluía (total ou parcialmente) no seu interior um receptor de rádio conectado a uma antena. Os botões ficavam nas costas e o alto-falante, na altura do peito.

Outra invenção foi a boneca “Miss Ilusão”, que vinha com perucas loiras e morenas e olhos que mudavam da cor azul para castanho com o simples toque de um botão.

As criativas bonecas de Beulah Louise Henry incorporavam obras-primas da engenharia no seu interior. — Foto: Getty Images via BBC

“Do lado de fora, esses brinquedos se adaptavam às normas de gênero da época e permitiam que as meninas praticassem as tarefas de cuidado associadas à maternidade. Mas, por dentro, os brinquedos de Henry eram obras-primas da engenharia que, por outro lado, continuava sendo atribuição dos homens”, afirma o USPTO.

Equipamentos de escritório

Na década de 1930, Henry concentrou sua criatividade inovadora no trabalho de escritório.

Entre 1932 e 1937, ela registrou quatro patentes para um aparelho conhecido como “protógrafo”. Com ele, era possível fazer simultaneamente até quatro cópias datilografadas mecanicamente de um mesmo documento, graças a uma segunda fita com tinta que se estendia ao longo do comprimento do rolo da máquina de escrever.

“Como máquinas complexas, as máquinas de escrever haviam sido projetadas e aprimoradas por homens, pois só eles tinham acesso às faculdades de engenharia nos Estados Unidos. Mas, como equipamentos úteis de escritório, as máquinas de escrever eram principalmente utilizadas por mulheres”, destaca o USPTO.

Até então, as cópias eram feitas com papel carbono, que acabava sujando as mãos da datilógrafa. Henry se perguntou se isso não poderia ser melhorado. E, como resposta, surgiu um acessório que deslizava uma fita com tinta entre as páginas, sem que a datilógrafa precisasse sujar as mãos.

‘Existe uma forma melhor de fazer isso’

Todos queriam saber o segredo do sucesso de Henry.

“Simplesmente olho para alguma coisa e penso: ‘Existe uma forma melhor de fazer isso’ — e a ideia surge para mim”, era a sua resposta.

Henry investia o lucro das invenções no seu processo criativo, pagando ilustradores, maquetistas e advogados que a ajudavam a preparar o pedido de patente seguinte. — Foto: Getty Images via BBC

Durante os anos 1920 e 1930, Henry e sua equipe conseguiram, em média, mais de duas patentes por ano, incluindo uma máquina de costura sem bobina para ajudar as pessoas que trabalhavam em grande escala.

Isso levou os jornalistas a apelidar Henry de “Lady Edison”, em referência ao mundialmente famoso inventor Thomas A. Edison, que havia dirigido um laboratório de inovação em Nova Jersey, nos Estados Unidos, equivalente a uma fábrica de patentes.

Henry prosseguiu em sua prolífica carreira, exceto por um único intervalo durante a Segunda Guerra Mundial. Suas patentes ficaram cada vez mais complexas e criativas até sua morte, em 1° de fevereiro de 1973.

“Nossos lares e locais de trabalho modernos refletem sua criatividade”, diz o USPTO.

“Os brinquedos infantis interativos e fáceis de limpar, os equipamentos de escritório cada vez mais simples e eficientes e os acessórios de moda práticos e fáceis de modificar são reflexo das inovações pioneiras de Henry.”

Em janeiro de 1962, Beulah Louise Henry concedeu sua última entrevista ao jornal The New York Times. Ela comentou sua reputação como “Lady Edison”:

“Na verdade, não mereço esse título, mas um jornal me deu há alguns anos, e ele ficou.”

“Nos dias de hoje, nós a definiríamos de forma diferente — não como ‘Lady Edison’, uma versão feminina de um famoso homem inventor, mas como a visionária que foi líder em todas as suas áreas de inovação. Henry era ambiciosa, prolífica e teve sucesso por direito próprio”, afirma o USPTO.

– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63069131

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