Manifestações em massa contra o governo tomaram conta do país desde 16 de setembro em uma escala que não era vista há mais de 40 anos. Alguns iranianos acreditam que os protestos já tiveram um efeito significativo na sociedade. Conheça os possíveis desdobramentos. Fantástico mostra como age a temida ‘polícia da moralidade’ no Irã
Os protestos que começaram no Irã há 50 dias como uma forma de denunciar a violência contra as mulheres se tornaram o mais sério desafio ao governo do país desde a Revolução Islâmica de 1979.
A agitação começou em 16 de setembro em resposta à morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos que havia sido detida pela polícia da moralidade na cidade de Teerã por supostamente violar as regras rígidas do país, que exigem que as mulheres cubram os cabelos com um hijab, ou um lenço de cabeça.
Desde então, os manifestantes continuam a desafiar uma repressão mortal das forças de segurança — o site Human Rights Activists News Agency (HRANA) afirma que 298 pessoas foram mortas e mais de 14 mil acabaram presas nos protestos que se espalharam por 129 cidades até o dia 2 de novembro.
Moradores do Irã disseram à BBC que as manifestações já trouxeram pelo menos cinco mudanças significativas para a vida cotidiana.
Abandono do hijab
Imagens de mulheres iranianas que se recusam a usar lenço na cabeça proliferam nas redes sociais
Getty Images via BBC
Nas últimas semanas, muitas mulheres iranianas desafiaram as regras sobre cobrir a cabeça. Várias foram vistas subindo em lixeiras e carros, enquanto agitavam os lenços no ar.
As redes sociais também estão repletas de mulheres em público sem lenços na cabeça, incluindo personalidades conhecidas, como a atriz Fatemeh Motamed-Arya. A escala desse desafio público não tem precedentes na história da República Islâmica.
Algumas postagens até mostram imagens de jovens iranianas com a cabeça descoberta perto das forças de segurança, embora as autoridades insistam que as regras não mudaram.
“Retirar o véu ainda é contra a lei”, disse Ali Khanmohammadi, porta-voz da polícia de moralidade do Irã, a um site de notícias, no dia 30 de outubro.
Isso não impediu as mulheres iranianas de contestar a proibição. Uma mulher de 69 anos disse à BBC que, desde o início dos protestos, ela muitas vezes saiu de casa sem usar um lenço na cabeça.
“Outro dia eu estava andando na rua e ouvi um carro buzinando atrás de mim. Eu me virei e vi uma jovem sem lenço na cabeça”, disse a mulher, que pediu para não ser identificada na reportagem.
“Ela me mandou um beijo e fez um sinal de vitória. E eu fiz o mesmo! Em questão de quarenta e poucos dias, o país mudou mais do que em quarenta e poucos anos.”
Símbolos nas paredes e nas ruas
Os atuais protestos no Irã também se destacam por causa de uma “batalha nos muros públicos”.
Ver slogans em grafite agora é comum, assim como vídeos nas mídias sociais em que as pessoas se gravam escrevendo nas paredes. As prefeituras cobrem os grafites com tinta, mas estão travando uma batalha que parece perdida.
A maioria dos slogans tem como alvo o líder supremo aiatolá Khamenei — em uma escalada de linguagem raramente vista antes — e ataca o regime teocrático do Irã, apontando a natureza secular do movimento de protesto.
Mas a verdadeira luta pelos espaços públicos está ocorrendo nas ruas: os manifestantes ignoram as regras que proíbem manifestações, além de derrubar ou desfigurar outdoors do governo com imagens e palavras próprias.
“As pessoas criaram zonas temporárias onde meninas e mulheres dançam enquanto a multidão aplaude, onde as pessoas cantam slogans exigindo o fim da repressão, se reúnem e discutem quais direções o movimento deve tomar”, disse o escritor e ativista iraniano Alex Shams à BBC.
“Os próprios protestos surgiram como um dos espaços mais importantes para os iranianos imaginarem um tipo diferente de futuro.”
Força dos jovens
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As crianças em idade escolar estão entre os grupos mais ativos nos protestos. A HRANA afirma que mais de 47 delas morreram nesses últimos 50 dias.
Jovens mortos tornaram-se símbolos proeminentes das manifestações. Nomes como Nika Shakarami e Sarina Esmailzadeh tornaram-se palavras de ordem populares — e as imagens delas aparecem em grafites.
É a primeira vez que iranianos mais jovens são vistos nesse papel durante os protestos.
A mídia social tem muitos vídeos de crianças em idade escolar (principalmente meninas) que cantam slogans antigovernamentais, rasgam fotos do líder supremo aiatolá Khamenei ou substituem as imagens nos livros escolares por retratos de pessoas mortas durante a repressão.
Um vídeo amplamente compartilhado nas redes sociais mostra um grupo de jovens gritando para um membro da força de segurança que foi à escola deles para dar uma palestra — eles dizem para ele “cair fora”.
O desafio que supera o medo
Em 29 de outubro, Hossein Salami, o chefe da Guarda Revolucionária, deu um ultimato aos manifestantes.
“Não venham para as ruas! Hoje é o último dia dos tumultos”, declarou à mídia estatal.
Mesmo com a recomendação, foram registrados mais relatos de protestos e confrontos com as forças de segurança nesta data.
A Serviço Persa da BBC se deparou com muitas histórias de pessoas que revelavam uma espécie de desafio nunca antes visto diante da repressão brutal.
Uma jovem que preferiu permanecer anônima disse que havia deixado o filho com a mãe para participar de um protesto.
“Eu estava com medo, mas devo fazer isso para dar um futuro melhor ao meu filho.”
Faravaz Favardini, cantor e ativista iraniano que mora na Alemanha, também acredita que a exasperação com a situação atual em todo o país deu impulso aos protestos.
“Tudo está ficando mais caro, há muita repressão”, explica. “Depois do que aconteceu com Mahsa Amini, as pessoas perceberam que mesmo aquelas que não eram engajadas na política podem ser mortas por nada. Acho que isso fez muita gente lutar por esperança.”
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Unidade
Uma característica notável desses protestos é como eles parecem ter reunido diferentes partes da sociedade iraniana, ao contrário de movimentos anteriores.
As manifestações que ocorreram em 2009, após os resultados das eleições presidenciais daquele ano, foram lideradas pela classe média. Já a revolta de 2019 representou principalmente os anseios de setores mais pobres da sociedade em relação aos preços dos combustíveis.
O movimento atual juntou vários grupos étnicos do Irã, que passaram a marchar juntos. E essa união também se refletiu nos slogans.
Nos primeiros protestos após a morte de Mahsa Amini, uma iraniana de origem curda, o slogan de sua língua nativa “Jin, Jiyan, Azadi” (“Mulher, Vida e Liberdade”, em tradução livre) veio à tona.
Agora também existem versões dessas palavras de ordem em farsi, a língua mais falada do Irã, e em azeri.
Alex Shams avalia que as alegações do governo de que os protestos podem levar ao separatismo étnico e à guerra civil no Irã não conseguiram abalar essa unidade dos movimentos.
“A solidariedade entre iranianos de diferentes origens tem sido fundamental para o impulso dos protestos e quebrou barreiras de medo e suspeita. Juntos, todos se recusaram a ser inimigos”, acrescenta.
Manifestações anteriores não foram capazes de provocar mudanças significativas no Irã, mas Shams acredita que, desta vez, a história pode ser diferente.
“As últimas semanas mudaram drasticamente a percepção das pessoas sobre o que é possível. E isso em si já é uma vitória”, conclui.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63512438