Em 2022, até agora, foram 1.200 homicídios, 60% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo dados oficiais. Cidade também sofre com massacres frequentes em prisões da região. A polícia guarda os arredores do estádio Monumental, onde acontecerá a final da Libertadores, em Guayaquil, Equador, em outubro de 2022
GERARDO MENOSCAL / AFP
Bairros tomados por gangues, massacres em presídios e uma polícia subjugada pelo poder de fogo dos criminosos: o tráfico de drogas transformou Guayaquil, no Equador, em mais uma capital do crime na América Latina.
A cidade de 2,8 milhões de habitantes, que sediará neste sábado (29) a final entre Flamengo e Athletico Paranaense da Copa Libertadores 2022, enfrenta uma violência que nasce nas ruas e se reproduz nos presídios com corpos baleados, queimados e mutilados.
Em 2022, até agora, foram 1.200 homicídios, 60% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo dados oficiais. Foi também em Guayaquil que ocorreu a maior parte das 392 mortes de presidiários em massacres registrados desde 2021.
Nessa espiral de violência, um promotor foi morto por pistoleiros e houve ataques com carros-bomba e explosivos, como o ocorrido em agosto, que matou cinco pessoas em frente a um restaurante popular.
Desde o início do ano, na comunidade de Socio Vivienda II, foram registrados 252 homicídios contra 66 em 2021, enquanto em Samborondón, um bairro murado e rico, foram 14 casos. Esses números revelam uma violência tão desigual quanto a própria Guayaquil, onde 26% da população vive na pobreza.
No último fim de semana, 21 pessoas foram mortas na cidade equatoriana, a maioria por pistoleiros. Desde então, governo do conservador Guillermo Lasso, presidente do Equador, mobilizou tropas, reforçou a polícia e iniciou operações para desmantelar as organizações criminosas. O tráfico continua de pé.
Cotidiano entre drogas e armas
Localizado entre Colômbia e Peru, os maiores produtores mundiais de cocaína, o Equador já era rota de trânsito das drogas para os portos. O tráfico de drogas se instalou à vontade, criou um mercado interno e, do porto de Guayaquil, envia centenas de toneladas para a Europa e para os Estados Unidos.
Em 2021, as autoridades apreenderam 210 toneladas de drogas e, este ano, já foram 160.
Soldados revistam moradores durante operação militar no Socio Vivienda 2, bairro em Guayaquil, Equador, em outubro de 2022
MARCOS PIN / AFP
Forças militares e policiais ocupam a entrada de Socio Vivienda II, que é a vizinhança mais perigosa de “Guayakill” — o neologismo se popularizou nas redes, pois “kill” significa “matar” em inglês. Na favela, 20 homens uniformizados de preto, com coletes à prova de balas, balaclavas e pistolas, andam de motocicleta.
Cerca de 24.000 pessoas vivem ali. As disputas entre gangues, que começaram em 2019, são mais frequentes e forçaram o fechamento temporário de escolas no último mês e meio.
Antes eram conhecidos como gangues, mas depois “começaram a se identificar como Lobos e Tiguerones, e a situação piorou”, diz uma líder comunitária de 45 anos que preferiu não se identificar. “O grupo dos Águilas opera mais acima, no morro.”
“As quadrilhas criminosas estão mais armadas do que a própria polícia”, afirma o major Robinson Sánchez, chefe de operações do setor. É uma “guerra” de pistolas contra fuzis.
Quando eclodiu a disputa pelo controle territorial, as famílias ergueram portões de metal em cada extremidade das ruas para impedir a entrada de criminosos, mas a polícia os derrubou em suas intervenções. Agora, conta a líder, as balas zumbem de um canto para o outro.
Durante uma patrulha, os agentes param em frente a uma casa e entram à força. Não encontram armas, nem drogas, apenas três jovens com tatuagens nos braços com o nome “Tiguerón” em letra cursiva, mas isso é insuficiente para detê-los.
O crime organizado usa crianças de 10, 12 anos como sentinelas, ou informantes. À medida que “crescem” na organização, ganham o direito à tatuagem — mas não sem antes ter cometido um crime.
Aqui e ali, vê-se os chamados “zumbis”, ou consumidores de H, um resíduo de heroína que é vendido a 25 centavos de dólar (1,34 real) por grama. E carros de luxo também entrem para carregar, ou deixar drogas, debaixo do nariz da polícia, comenta a líder do bairro.
Temendo que seus filhos sejam recrutados, as famílias abandonam suas casas e, assim que saem, as gangues “já se instalam” nelas, acrescenta.
Massacres frequentes nas prisões
Em 29 de setembro de 2021, Tyrone Paredes, o filho mais velho dos quatro de Myrta Preciado, morreu no pior massacre já ocorrido em uma prisão equatoriana. Estava detido há um ano por roubo na penitenciária de Guayas 1.
Seu corpo estava entre os 122 mortos em um confronto que durou horas.
Myrta Preciado, mãe de Tyrone Paredes, vítima de massacre em prisão no Equador, chora durante entrevista à AFP
MARCOS PIN / AFP
Myrta, uma dona de casa de 44 anos que mora na cidade de Durán, perto de Guayaquil, não imaginava que seu filho estivesse entre as vítimas, porque ele não fazia parte das “gangues”. O corpo do jovem de 27 anos foi um dos últimos a ser identificado: as pernas e a mão esquerda foram mutiladas, e em partes ele também foi queimado.
“Meu filho não teve a cabeça arrancada como os outros, e tinha uma cicatriz na sobrancelha e uma bola de carne atrás da orelha”, conta a mulher. Esses sinais, mais um teste de DNA, confirmaram que era ele.
A mãe nunca recebeu explicações oficiais, ou mesmo ajuda psicológica. Sentada no sofá de sua casa, Myrta estende uma foto colorida de Tyrone. “Filho, por que mataram você?”, pergunta-se.
Para as autoridades forenses, o desafio não é pequeno. “Antes não enfrentávamos a crueldade a desfiguração das vítimas. Víamos o uso de armas pequenas, revólveres. Mas agora enfrentamos fuzis, granadas, explosivos. A violência cresceu muito”, descreve o chefe da Medicina Legal, major de polícia Luis Alfonso Merino.
Quando episódios como esse acontecem nas penitenciárias, os presos notificam o que está para acontecer via WhatsApp, explica Billy Navarrete, da ONG Comitê de Defesa dos Direitos Humanos. “Finalmente chega o dia, e começamos a ouvir tiros e detonações. Famílias se reúnem em frente às prisões — e a força pública não para os ataques entre um pavilhão e outra”, afirma Navarrete. “Lá eles se matam.”
Segundo o ativista, os presos são “reféns das gangues” que tomaram as prisões para transformá-las em centros de operações “seguros”. Os detentos devem pagar entre US$ 400 e US$ 500 (R$ 2136 e R4 2670) por mês para essas organizações. “Eles pagam pela vida, pela comida, pelos remédios, por tudo”, conta.
Uma parente de um detento é removida pela polícia enquanto esperava notícias de seu ente querido, do lado de fora da Penitenciária do Litoral em Guayaquil, Equador, outubro de 2022
AP Photo/Cesar Munoz
Mesmo quando um deles é morto, a família deve continuar pagando a “dívida”. “O dinheiro é depositado em uma conta, ou seja, entra no sistema financeiro, é toda uma rede sem nenhuma investigação”, afirma Navarrete.
A ONG registra 600 presos assassinados desde 2019 e 3.000 menores e adolescentes órfãos como resultado. A população carcerária chega a 32.400 pessoas em todo país.
“O Estado não governa as prisões”, diz o ativista. “[Os centros de detenção estão sob o controle de] organizações criminosas com a cumplicidade de agentes da força pública que permitem, toleram e se enriquecem com o tráfico de armas.”