Ninguém sabe como realmente lutavam os cavaleiros medievais. Ilustração de cavaleiros lutando da série de livros de luta ‘Gladiatória’
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Um dia, em meados do século 12, um monge igual aos demais sentou-se na Abadia de Santo Edmundo, em Suffolk, no Reino Unido, e começou a escrever.
Assim ele registrou a vida escandalosa de um homem que ele havia conhecido alguns anos antes – esperando que a história não fosse inadequada demais.
Mas o interesse do monge anônimo havia começado em outra abadia britânica que ele havia visitado, em Reading. Dentro das rústicas paredes de pedra da imponente construção, nas sombras de uma sala quase sem nenhuma iluminação, ele encontrou os irmãos residentes.
Entre eles, um se destacava como alguém incomum – um monge que, embora vestido com o mesmo manto com capuz dos demais, havia levado uma vida muito diferente antes de ingressar na abadia. E, em voz baixa, ele explicou que havia se tornado monge por acidente.
Em 1157, Henrique de Essex havia sido um nobre de nascimento (não por seus feitos), rico e poderoso. Ele era um cavaleiro famoso pelas suas habilidades com a espada e contava com a confiança do rei Henrique 2° da Inglaterra.
Mas ele não era muito bondoso. Essex roubava dinheiro, trazia vergonha para as mulheres e havia torturado um homem inocente.
Até que ocorreu um incidente inusitado em uma batalha no País de Gales, que ameaçou sua posição. Essex anunciou erroneamente que o rei havia morrido, quase causando a desistência e fuga do exército.
Seis anos depois, em Reading, um dos seus próprios parentes declarou publicamente que aquele havia sido um ato de traição e o desafiou para um duelo. Seria um julgamento por combate, algo comum na época.
Com a multidão assistindo nas margens lamacentas do rio Tâmisa, o parente acusador, que também era cavaleiro, atacou com “golpes duros e frequentes”.
Inicialmente, Essex defendeu-se com habilidade. Mas, depois de uma série de visões das pessoas que ele havia mal tratado, começou se encher de vergonha e medo.
Ele voou cegamente contra o seu oponente, abandonando tudo o que, um dia, havia aprendido sobre lutas com espadas. E, em meio a muitos ruídos das lâminas atingindo as armaduras dos oponentes, ele caiu. O rei ordenou que os monges locais carregassem o corpo de Essex e o enterrassem.
Mas, milagrosamente, Essex sobreviveu e passou o resto da vida em penitência entre os monges. E, muitos anos depois do incidente, ele conheceu aquele monge cronista.
Sua história foi imortalizada como uma fábula moral, mas existe um outro ponto de vista: Essex havia abandonado seu conhecimento de luta de espadas e perdeu tudo.
Decididamente, algumas imagens dos manuais de luta podem ser aterradoras
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Os cavaleiros eram as maiores celebridades da era medieval. Os mais hábeis eram recompensados com castelos, terras e influência na corte.
Eles eram generosamente festejados como heróis românticos do seu tempo, retratados em lendas, poemas e pinturas, que registravam seus confrontos de espadas e gestos cavalheirescos.
É claro que tornar-se cavaleiro exigia mais do que apenas uma armadura brilhante e um nobre cavalo. Era preciso ter técnica.
Era comum que os guerreiros ambiciosos treinassem por até 10 anos, muitas vezes desde a infância, praticando a agilidade com os pés, ensaiando como repelir ataques e aprendendo as mais terríveis formas de matar seus oponentes o mais rápido possível.
A luta com espadas não era questão de cortar ou espetar aleatoriamente os adversários. Era uma arte marcial sofisticada, que poderia competir com o sumô ou kung fu.
Mas, séculos depois, as informações básicas para entender seus segredos foram perdidas. Apesar de anos de estudo, as técnicas envolvidas atualmente são um mistério. E, na verdade, as lutas de espadas retratadas no cinema, no teatro ou na TV, com ataques e defesas elaboradas, foram, em grande parte, inventadas.
“Às vezes, isso estraga o prazer de assistir à TV”, segundo Jamie MacIver, instrutor de luta de espadas e ex-presidente do Clube de Esgrima Histórica de Londres, “porque você olha e pensa, ‘oh, meu Deus, espere, o que vocês estão fazendo?'”
Como isso aconteceu? Será que, algum dia, chegaremos a descobrir como realmente era?
Heróis e açougueiros
Os maiores especialistas em lutas de espadas medievais eram os “mestres do combate” – atletas de elite que treinavam seus discípulos nas artes sutis do combate corpo a corpo. Os treinadores mais renomados eram quase tão famosos quando os próprios cavaleiros treinados por eles.
Muitas das técnicas que eles usaram eram antigas, de centenas de anos antes, transmitidas em tradição contínua. Pouco se sabe sobre esses raros talentos, mas as poucas informações que chegaram até nós são cheias de intrigas.
Um exemplo é o mestre da esgrima alemão Hans Talhoffer, com seus cabelos ondulados, enormes costeletas, inclinação para roupas apertadas e um passado particularmente atribulado. Em 1434, Talhoffer foi acusado de assassinar um homem e admitiu tê-lo raptado na cidade de Salzburg, na Áustria.
Os mestres do combate trabalhavam com uma assustadora variedade de armas mortais.
A maior parte do treinamento era dedicada à esgrima com espadas longas, ou espada e broquel (um estilo de combate que envolvia empunhar uma espada em uma das mãos e um pequeno escudo na outra). Mas os mestres também ensinavam como brandir punhais, alabardas, escudos e até como lutar com as mãos ou apenas com um saco de pedras.
Acredita-se que alguns mestres do combate fossem organizados em irmandades, como a Fraternidade de Liechtenauer – uma sociedade que congregava cerca de 18 homens que treinavam com a orientação do sombrio mestre Johannes Liechtenauer, no século 15.
Os detalhes sobre aquela figura quase lendária permanecem obscuros, mas acredita-se que ele levasse uma vida nômade, atravessando fronteiras para treinar alguns poucos protegidos selecionados e aprender novos segredos da esgrima.
Outros mestres do combate moravam mais perto de casa, contratados por duques, arcebispos e diversos outros nobres para treinamento próprio e dos seus guardas. Alguns chegavam a formar suas próprias “escolas de luta”, onde reuniam alunos com menos recursos para sessões semanais de aprendizado.
Neil Grant, curador do museu Royal Armouries, no Reino Unido, explica que um desses professores formou um programa de ensino na Universidade de Bolonha, no norte da Itália. Os registros existentes mostram que o custo para frequentar esse programa era aproximadamente equivalente ao de uma academia de ginástica moderna.
Lá, o professor ensinava aspirantes a guerreiros e cavaleiros, além de cidadãos comuns, preparando-os para a guerra ou ensinando a sobreviver a torneios ou duelos judiciais.
Não era brincadeira. Na Idade Média, a principal motivação dos aprendizes de lutadores era a perspectiva de não morrer como recompensa dos seus esforços. Mas também era possível ganhar honras sociais. Os melhores lutadores conseguiam transcender as hierarquias da época, lançando-se até as classes governantes.
Era essencial, no mínimo, que a esgrima fosse sofisticada para não desperdiçar dinheiro.
“Até mesmo a fabricação de uma espada pequena exigia uma incrível quantidade de aço”, afirma Richard Scott Nokes, professor de literatura medieval da Universidade Troy, no Alabama (Estados Unidos). Ele explica que aquecê-la o suficiente também consumia centenas de quilos de carvão.
“O imenso custo significava que não era apenas ter uma arma e dizer, ‘bem, vou sair agora e espetá-los na ponta [da espada]'”, ele conta. “Você não iria querer danificá-la.”
Em uma luta dramática entre um homem e uma mulher, Talhoffer mostra a mulher sendo lançada em um buraco de cabeça para baixo
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Alguns mestres do combate consideravam suas técnicas um segredo absoluto, mas ainda se discute exatamente o verdadeiro grau desse segredo. Um cavaleiro italiano particularmente famoso do século 14, Fiore de’I Liberi, decidiu manter suas técnicas em segredo para que seus alunos pudessem ter uma vantagem – ou qualquer pessoa poderia aprender a lutar contra eles.
Mas Grant indica que pode ter sido mais questão de marketing do que de integridade. “Se você tiver três mestres do combate e um deles disser ‘vou ensinar a você aquilo que todos conhecem’ e os outros dois disserem ‘não, eu conheço artes místicas que ninguém mais poderia combater’, qual deles você irá seguir?”, questiona ele.
Felizmente, vários cavaleiros pensaram na direção oposta e escreveram suas técnicas em “livros de luta”. São manuscritos ornamentadamente decorados que incluem descrições de diversas técnicas, frequentemente acompanhadas por ilustrações – às vezes, de pessoas reais da era medieval – para demonstrá-las na prática.
Esses livros teriam sido encomendados pelos empregadores mais ricos dos instrutores e alguns teriam vários autores, trabalhando em conjunto por anos até completá-los.
Mas, apesar de toda a sua beleza, as obras desenhadas à mão também podem ser decididamente sanguinárias.
O manual de Talhoffer, de 1467, mostra sequências claras de movimentos parecidos com danças que terminam abruptamente com espadas através das órbitas, violentos empalamentos e instruções pontuais sobre como vencer o oponente até a morte. Algumas técnicas específicas chegam a ter nomes – títulos assustadores como “talhar com fúria”, “amassador”, “enforcamento duplo”, “bater no crânio” e “quatro aberturas”.
Mesmo depois de incontáveis gerações de proprietários e, em alguns casos, séculos de rabiscos, queimas, roubos e períodos misteriosos de desaparecimento dos registros históricos, uma quantidade surpreendente desses livros sobrevive até hoje. Eles incluem pelo menos 80 códigos, somente das regiões de fala alemã.
Movimentos impossíveis e falta de indicações
Mas existe um problema. Muitas das técnicas dos manuais de combate, conhecidos em alemão como fechtbücher, são complicadas, vagas e incompreensíveis. Apesar da grande quantidade de livros remanescentes, eles surpreendentemente oferecem poucas informações sobre o que o mestre do combate está tentando transmitir.
“A dificuldade de pegar essas imagens entalhadas em xilogravura, estáticas, sem movimento, e determinar a ação dinâmica de combate é famosa”, afirma Scott Nokes. “É um tema de debate, pesquisa e experimentação há gerações.”
A Europa medieval era fascinada pelo governante muçulmano Saladino. Mesmo tendo lutado contra eles, os europeus o consideravam o cavaleiro perfeito – um modelo de conduta
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Em algumas ocasiões, esses manuais parecem ilustrar contorções do corpo que são fisicamente impossíveis. Em outras, ilustrações que tentam mostrar movimentos em três dimensões, às vezes, exibem os combatentes com maior quantidade de braços e pernas, acrescentados por erro.
Ainda outros manuais incluem instruções decepcionantemente imprecisas. Às vezes, eles ilustram ações que não parecem funcionar ou baseadas em movimentos enigmáticos perdidos há muito tempo.
Curiosamente, o texto é frequentemente escrito em forma de poesia, em vez de prosa. E alguns autores chegaram a dificultar propositadamente a interpretação das suas obras.
Liechtenauer registrou suas instruções em versos obscuros que permanecem quase incompreensíveis hoje em dia. Um especialista chegou a chamá-los de “indecifrável”.
Segundo um mestre do combate contemporâneo treinado por ele, o grande mestre escreveu o livro em “palavras secretas”, para que fosse ininteligível por qualquer pessoa que não desse valor suficiente à sua arte.
Mesmo quando for possível decifrar o que o manual de luta está descrevendo ou demonstrando, alguns especialistas suspeitam que fiquem sempre faltando informações contextuais básicas.
Um exemplo é Philippo di Vadi, outro mestre da esgrima italiano. Ele escreveu seu livro de luta no século 15, basicamente em forma de texto – novamente, escrito em poesia, incluindo passagens escolhidas puramente por motivo de rima.
Uma análise indica que, para conseguir qualquer informação significativa, os tradutores precisam atravessar metáforas obscuras que saíram de uso há muito tempo. Por exemplo: “se você tiver sal no cérebro [se você tiver o dom], precisa considerar aqui a melhor forma de subir estas escadas [a melhor forma de ter sucesso].”
Mesmo as instruções genuinamente informativas, muitas vezes, deixam de incluir detalhes importantes.
“Na maior parte das vezes, não é tanto questão de não conseguir entender o que está escrito, mas sim que existem quatro ou cinco possibilidades do que possa ser. E, às vezes, elas não fazem sentido”, explica MacIver.
Para MacIver, um dos movimentos mais difíceis de entender é o movimento dos pés de di Vadi – onde você pisa enquanto “corta”, um tipo de ataque feito com um movimento de corte da espada.
“Em todo o texto, ele fala, ‘oh, eu consegui um novo movimento dos pés, é melhor que o movimento antigo'”, afirma MacIver. “Por isso, ele realmente enfatiza o quanto é importante para ele. E ele então escreve sobre isso – e é simplesmente incompreensível.”
Além da longa espada, Talhoffer ensina os leitores a lutar com armas mais especializadas, como os ‘Stechschilde’ – escudos de duelo
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E existem as imagens. Na época, ainda não era comum desenhar ou pintar em três dimensões. Quando essa forma nascente de arte estava sendo aprimorada, as tentativas de transmitir profundidade nas ilustrações, muitas vezes, podiam ser confusas. É o caso das imagens dos livros de luta.
“Às vezes, você realmente não consegue descobrir qual dos dois lutadores envolvidos deve estar ganhando”, afirma MacIver. “Existe uma [ilustração] específica… os dois lutadores têm uma espada contra o pescoço.”
Para descobrir a fundo o que os cavaleiros realmente estavam fazendo, tudo isso precisa ser desvendado. Mas, mesmo que isso aconteça, existem inúmeras outras incógnitas, como a frequência exata em que as técnicas mais específicas eram realmente utilizadas.
“Alguns [livros de luta] trazem coisas tão estranhas que você vê que ‘isso não pode ser usado com frequência'”, explica Grant.
Ele dá como exemplo a sequência de livros de luta conhecida como Série Gladiatória, que contém indicações surpreendentes. “Um dos movimentos incluem desenroscar o pomo da espada [o acabamento esférico do punho] e atirá-lo em alguém”, segundo ele.
Como essas técnicas extravagantes são mencionadas em apenas um livro, fica difícil afirmar se elas realmente eram de uso comum, tendo sido simplesmente desprezadas pela maioria dos autores, ou se são tão raras que quase nunca eram praticadas.
Mais monges… e mulheres
Escondida nas últimas páginas do livro de Talhoffer, depois das numerosas imagens de homens medievais engalfinhando-se com espadas, porretes e alabardas, existe uma visão surpreendente: um homem em pé, dentro de um buraco até a cintura, parecendo um tanto ansioso, enquanto uma mulher em uma armadura folgada balança calmamente uma espécie de porrete improvisado no ar acima dele.
Na verdade, ela está empunhando uma rocha que pesa cerca de 1,8-2,3 kg (o peso aproximado de um tijolo padrão moderno) e estava embrulhada no seu véu. Ele está armado com um porrete com comprimento equivalente.
Esta cena estranha intriga os historiadores há décadas. Acredita-se que seja um “duelo judicial”, o mesmo método usado para julgar Henrique de Essex por traição.
Na era medieval, esta era uma forma perfeitamente legal de resolver disputas, confiando no julgamento de Deus. Segundo a lógica da época, deve haver uma parte culpada e, naturalmente, o poder celestial garantiria que essa parte perdesse a luta.
Joana d’Arc tinha diversas espadas, mas, na verdade, nunca as usou para matar alguém
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Era comum treinar para essas lutas, da mesma forma que para qualquer outro combate, e as imagens parecem ser instrutivas.
São nove imagens ao todo, cada uma ilustrando um movimento diferente. Como costuma ocorrer, não é muito fácil acompanhá-las, mas, em algumas, o homem tem sucesso e mata a mulher – em um cenário particularmente dramático, ela é puxada para o buraco de ponta-cabeça. Já em outras, a mulher sai vitoriosa.
Tem se especulado muito que essa batalha específica seria uma tentativa de resolver uma disputa conjugal, possivelmente até o “divórcio por combate” – e a configuração incomum pode ter sido idealizada para eliminar parte das vantagens do homem. Mas, como ocorre com muitas técnicas bizarras nos livros de luta, trata-se de um completo mistério.
“É muito, muito estranho – por favor, não me peça para explicar!”, afirma Grant.
E esta não é a única menção inexplicada de mulheres nos livros de luta. O manual de combate europeu mais antigo já encontrado é um livro com cerca de 750 anos de idade, conhecido como MS I.33 – a página de título com seu nome real e autor está faltando.
O curioso volume contém instruções de sequências com a espada e broquel e envolve um grupo de personagens que confunde os historiadores até hoje.
Não se sabe ao certo se a mulher que luta no livro MS I.33 é a famosa abadessa Santa Valburga ou outra pessoa com o mesmo nome
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Para começar, cerca de metade das cenas ilustra um padre – completo, com a “coroa” de calvície ou corte de cabelo característico e manto – duelando com um aprendiz. Por si só, esta já é uma imagem totalmente não ortodoxa.
Ela significa que a esgrima era um passatempo comum nos monastérios? Seria possível que nobres em desgraça como Essex pudessem ter continuado a aprimorar suas técnicas depois de se tornarem monges? Ou a inclusão das figuras religiosas, de alguma forma, é simbólica?
De fato, o primeiro lugar que se tem registro de ter abrigado o livro foi um monastério. Mas, até hoje, ninguém tem as respostas.
As outras imagens são tão estranhas quanto esta. Elas ilustram uma mulher chamada Walpurgia (Valburga, em português) duelando com um padre. Ela usa cabelo solto em tranças até a cintura ou ostenta o corte de cabelo tradicional das mulheres daquela época.
Mulheres lutando na Idade Média não seriam algo totalmente sem precedentes. Na Europa, Joana d’Arc, camponesa do norte da França, ficou famosa ao vestir a armadura para participar da Guerra dos Cem Anos. Já a rainha inglesa Margarida de Anjou liderou seu próprio exército em batalha no século 15.
Mas não se acredita que as mulheres costumassem lutar com frequência, de forma que a inclusão casual de Walpurgia no livro é uma surpresa. “As pessoas já criaram todo tipo de teorias, mas simplesmente não sabemos”, afirma Grant.
Por que as lutas com espadas desapareceram?
Os cavaleiros atingiram seu auge na era medieval, mas a luta com espadas permaneceu sendo uma parte importante da cultura europeia por séculos. Ela foi mais popular durante a dinastia Tudor, no século 16.
Antes disso, as escolas de luta eram comuns nas cidades alemãs, mas proibidas na Inglaterra, onde eram consideradas uma ameaça à lei e à ordem. Até que, em dado momento, as leis começaram a se afrouxar.
“Na verdade, você começa a ter o crescimento dos duelos entre civis. Na maior parte da Idade Média, as pessoas não andavam com espadas durante o dia mais do que as pessoas modernas andam com fuzis de assalto nos ombros”, segundo Grant.
Mas, no século 16, as espadas se tornaram perfeitamente aceitáveis e até entraram na moda. “Começamos a ter duelos sobre questões de honra cada vez mais banais”, afirma ele.
Naquela época, muitas das técnicas antigas de luta com espadas já estavam sendo abandonadas e a prática começava a evoluir rumo à esgrima moderna. Um historiador da época era particularmente crítico do declínio das técnicas antigas, incluindo a preferência pelos espadins em substituição às espadas curtas tradicionais – embora “ele também fosse o tipo de pessoa que [se estivesse vivo hoje] estaria reclamando das coisas no YouTube”, indica Grant.
O golpe final veio com a invenção da pistola. No século 18, essas novas armas acabaram substituindo as espadas como método preferido de duelo. Afinal, enquanto você precisava aprender a lutar com uma espada, qualquer pessoa conseguia simplesmente puxar um gatilho.
Casacos acolchoados e espadas cegas
Surpreendentemente, as pessoas que tentam responder essas questões, muitas vezes, não são historiadores, mas artistas marciais modernos.
Ao longo dos últimos 20 anos, vem crescendo constantemente o interesse pelas Artes Marciais Históricas Europeias (HEMA, na sigla em inglês). Existe atualmente uma comunidade florescente de entusiastas amadores, que passam grande parte do seu tempo livre mergulhados nos livros de luta e, muitas vezes, traduzindo os manuais de idiomas europeus antigos, como o alto-alemão médio.
Essas primeiras conversões ainda precisam ser interpretadas. Por isso, para poderem avançar, os artistas marciais as discutem e apresentam possíveis movimentos correspondentes.
É aqui que tudo fica sério. “Realmente, a única forma de conseguir algum tipo de resposta é experimentar esses movimentos com os amigos”, explica MacIver.
Os entusiastas modernos e os mestres da luta medievais têm objetivos diferentes. Os primeiros lutam para evitar lesões a todo custo, enquanto os últimos queriam ensinar como matar um adversário o mais rápido possível.
Por isso, nada acontece hoje em dia sem equipamento completo de proteção, desde grossos casacos com enchimento de espuma em volta dos órgãos vitais, luvas e calças de proteção, até máscaras de esgrima resistentes.
O movimento é então realizado em baixíssima velocidade, para descobrir sua mecânica. Em vez de espadas reais, eles usam armas cegas com peso similar.
“E são mais flexíveis”, segundo MacIver. “Por isso, se você atingir uma pessoa, elas simplesmente não a perfuram.”
Em algum momento, depois de várias tentativas com diferentes métodos, os artistas marciais conseguem definir o movimento que mais se aproxima das imagens e ilustrações. E, finalmente, ele é realizado em velocidade normal, normalmente como parte de uma sequência que inclui outras técnicas antigas.
Se eles tiverem sucesso, a recompensa é quase uma forma de viagem no tempo – uma interação com mestres do combate que morreram centenas de anos atrás, experimentando ações físicas que estavam esquecidas há muito tempo. Talvez o mesmo movimento de espada que derrubou Henrique de Essex, quem sabe?
“É uma grande satisfação quando você está finalmente em um torneio [de HEMA] e faz algo que pode ser encontrado em um livro que foi escrito 500 anos atrás”, afirma MacIver.
Os manuais de luta com espadas frequentemente incluíam instruções para duelar com ou sem armadura
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Mas o processo pode ser extremamente complicado e, muitas vezes, repleto de confusões e enormes falhas de dedução.
“São muitas idas e vindas, sabe, você chega a becos sem saída todo o tempo”, segundo MacIver. “Então você pensa, ‘OK, acho que consegui’, tenta alguma coisa e diz, ‘isso não funciona’.”
Na busca para resolver o famoso movimento dos pés de di Vadi, MacIver chegou a quatro possíveis movimentos que se enquadram, de forma geral, na poesia ambígua das suas instruções.
“E todas elas parecem funcionar bem”, ele conta, “de forma que é quase impossível descobrir a qual ele se referia… Tenho um amigo que especulou que talvez ele quisesse indicar todas as quatro, mas acho que isso daria muito crédito a ele.”
Em outros casos, uma dor aguda e um grito pedindo para parar são a indicação de que eles podem estar chegando a algum lugar. Ao tentar simular um movimento de quebra de braço, MacIver e seu amigo descobriram que este deveria ser acrescentado à sua lista de movimentos proibidos.
“Estávamos tentando todas essas opções diferentes – este não parece certo, este não faz nada, este não é bom…”, ele conta. Mas, quando eles finalmente encontraram uma provável solução, surgiu um grito súbito: “… depois da mais leve pressão, ele começou, ‘não, não, não, pare, já chega’.”
Talhoffer não foi apenas um especialista em lutas – ele tinha interesses variados, que incluíam a astrologia e a matemática
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É claro que nem sempre é fácil dizer se uma técnica funcionou como pretendido. Por isso, os artistas marciais atualizam continuamente suas interpretações à medida que surgem novas evidências.
As posições de proteção de di Vadi são um exemplo. São posturas defensivas a serem adotadas antes de começar uma sequência de ações de luta com espadas.
MacIver explica que esses pontos de partida são essenciais, pois tudo o que acontece depois envolve a movimentação de um para outro.
Por cerca de dois anos, ele acreditou que uma dessas posturas ensinava a manter a espada no lado direito do corpo. Até que, um dia, algo o fez perceber que era exatamente o contrário.
“É muito difícil dizer a partir da imagem, pois a perspectiva não é muito boa. Era meio que plana. E existe algum tipo de indicação visual, mas não é óbvio, por exemplo, o ângulo do cotovelo dobrado, além de outras partes e informações”, afirma MacIver.
E, mesmo com relação aos movimentos mais óbvios, alguns historiadores acreditam que os artistas marciais estejam tentando o impossível. Nesta perspectiva, tentar recriar técnicas de luta antigas é um pouco como reviver músicas perdidas há muito tempo. Ambos dependem de considerações intangíveis que eram de conhecimento comum na época, mas foram esquecidas há muito tempo.
Como ocorre com lutas medievais, as descrições de músicas da época são muito vagas e decepcionantes.
Muito antes de serem expressas em notas musicais, as canções eram escritas por meio de “descrições melódicas”. Tudo o mais de que você precisava para interpretar uma música específica era armazenado nos cérebros dos músicos e passado fielmente por meio de tradições orais. Depois que ela saía de moda, tudo deixava de ser transmitido – e, quando isso acontecia, as músicas desapareciam.
Na verdade, os historiadores reconhecem cada vez mais a importância do chamado “conhecimento incorporado” – em que o corpo aprende como agir por meio da prática ou da observação – para compreender o passado. Este tipo de memória sensorial inclui coisas como andar de bicicleta, que pode ser descrito em palavras, mas não dominado sem que se sente fisicamente sobre o selim.
Infelizmente, a luta medieval com espadas apresenta inúmeras oportunidades para a compreensão errada desses detalhes. Não sabemos com que força os golpes atingiam o adversário, o momento em que eram realizados os diferentes movimentos (incluindo quanto tempo ficar em cada posição, o que poderia sofrer grandes variações) ou os ângulos exatos dos movimentos de corte da lâmina da espada no ar.
É como tentar ensinar alguém a ser uma bailarina profissional comunicando-se apenas por e-mail. Quais seria a possibilidades de realizar todos os movimentos corretamente?
Os livros de combate de Talhoffer não mostravam apenas técnicas de luta com espadas. Eles também incluíam projetos de diversas máquinas de guerra
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Isso sem falar na drástica diferença entre como você se comportaria em real perigo de morte, em comparação com uma sessão basicamente coreografada em uma reunião depois do trabalho.
MacIver indica um fato importante ressaltado por de’I Liberi, que dizia aos seus alunos: “… para quem luta com espadas afiadas, em uma simples cobertura [tentativa de bloquear um golpe] que falha, este ato resulta na sua morte.” Lutar sem armadura era tão perigoso que ele próprio só o fez cinco vezes em toda a vida – nunca voluntariamente.
De fato, muitas conclusões modernas sobre como lutavam os cavaleiros provavelmente não se mantêm. Uma é a elegância das lutas de espadas, que eram muito diferentes das exibidas na televisão ou mesmo na literatura medieval.
Teoricamente, os cavaleiros eram regidos pelo código da cavalaria – um conjunto de padrões de comportamento aceitável no campo de batalha. Mas Grant indica que, mesmo assim, esses nobres ideais, muitas vezes, não eram cumpridos nem mesmo na teoria, que dirá na prática.
“Certamente, Fiore [de’I Liberi] sabe o que é uma luta justa e não quer fazer parte dela”, afirma Grant. “O importante é ter certeza de que você seja o que irá sair vivo no final. Se isso significar dar golpes sujos, ‘OK, muito bem, siga em frente’.”
De fato, existem indicações de que o combate no mundo real teria sido escandalosamente bárbaro. Grant destaca as indicações oferecidas por esqueletos medievais. Eles demonstram que as lutas raramente ocorriam com um golpe após o outro, pelo menos nas guerras. Elas eram confusas, rápidas e, muitas vezes, vários homens atacavam um único adversário simultaneamente.
“O que acontece é que você dá um bom golpe na cabeça de alguém e eles sofrem uma série de golpes”, ele conta. “… Com muita frequência, o que você vê [no crânio] é que eles têm seis feridas na cabeça e duas ou três delas provavelmente serão fatais. No momento em que você perde o equilíbrio, o seu oponente irá acompanhar, ficar em cima de você e continuar batendo.”
Mas, apesar das grandes diferenças entre as reinterpretações modernas e a realidade histórica, MacIver está irredutível. Ele acredita que, independentemente dos erros que são inevitáveis, os antigos mestres das lutas aprovariam o que os entusiastas da HEMA estão tentando fazer. Afinal, alguns deles registraram seus segredos exatamente porque queriam evitar que eles fossem perdidos.
Como explicou di Vadi 540 anos atrás, em seu próprio livro de luta, as técnicas antigas que ele aprendeu “não desaparecem por negligência de minha parte”. E, embora ainda haja muito trabalho pela frente, podemos dizer que ele está a caminho de atingir seu objetivo.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.A versão em português deste artigo foi publicada originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-64144722
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