A escritora e acadêmica brasileira morreu aos 85 anos em Lisboa. Ela foi a primeira mulher a presidir a entidade. A acadêmica Nélida Piñon durante a posse da diretoria da Academia Brasileira de Letras em 1996, quando ela foi presidente
ABL
A escritora e acadêmica brasileira Nélida Piñon morreu aos 85 anos em Lisboa, neste sábado (17). Ela se tornou membro da Academia Brasileira de Letras em 1989 e foi presidente da entidade em 1996, sendo a primeira mulher a ocupar esse cargo.
Em seu discurso de posse, ela se descreve como “filha dos livros e da imaginação”, exalta o amor pela arte da escrita e reforça a relação entre literatura e história.
Leia abaixo na íntegra:
A viagem é longa e não faz falta que eu lhes diga como começou. Afinal, os percalços de qualquer trajetória humana fazem parte de um enredo eminentemente secreto. De uma experiência pronta a desfazer-se, ou a naufragar no anonimato – sem a luminosa proteção da fina tessitura da arte.
Para anunciar os vestígios, pois, de uma vida, ainda que seja da tribuna, do púlpito, há que harmonizá-los com a vertigem da arte narrativa, que tem recursos suficientes para revelar os traços biográficos sem apagá-los ou banalizá-los. Para extrair enfim da alma aqueles fios que favorecem as regiões esquecidas, negligenciadas.
A sorte minha, e a dos que aqui estão presentes, repousa essencialmente na eloqüência com que sonhamos, no esforço com que erigimos a casa, qualquer casa, que sirva de abrigo às nossas aventuras.
Por onde se caminhou, fomos deixando pegadas que o tempo, quantas vezes acusado de algoz, outras de justo, tudo fez para apagar. Como se a exuberância de qualquer história merecesse perder-se em meio às demais. De modo que de nós sobrem apenas os atos discretos e a esperança de sermos um dia, e não muito distante, a memória que um distraído vizinho traga de volta à vida.
A verdade é que, perdida neste mar de sargaços, há muitos anos iniciei a viagem que me traz hoje a este salão nobre. Uma viagem feita, entre outros tropeços, de vontade individual, de coincidências coletivas, de acasos que certos deuses, afetados pela passagem do tempo, incumbem-se de decifrar. Feita também do desejo que me levou a explorar escaninhos, a acercar-me das caixas lacradas, onde o mistério humano, sempre precariamente encarnado, depositou, à minha revelia, certos manuscritos.
Graças, porém, a estes palimpsestos, a cuja leitura jamais tive acesso, mas onde decerto a vida e arte se bifurcam, aqui estou para receber os desígnios da presidência desta ilustre Academia Brasileira de Letras. Uma distinção que seus ilustres membros me concedem e que tanto me honra.
Uma honra, contudo, que se reparte com o passado brasileiro, com seres e fatos que permeiam ainda agora a história desta augusta instituição, enquanto impõe-nos o convívio com a memória. Seguidas evocações que, relativizando o impacto da história e o furor do esquecimento, ensinam-nos a acatar as simetrias que governam os habitantes desta Casa. O reconhecimento de que, acima do debate circunscrito às correntes estéticas, aos preceitos lingüísticos, às especulações políticas, filosóficas, teológicas, que cada qual de nós encarna ou defende, une-nos a convicção de sermos herdeiros do legado desta Casa. Uma instituição sobre a qual paira a inabalável crença de que é forçoso preservar, enriquecer a amada língua portuguesa. Para que por meio sempre de seu intenso uso jamais se esgarce o tecido dos sentimentos brasileiros, as razões profundas do nosso ser nacional.
Guardo desde menina, irrestrita fidelidade ao destino da escritura. Apraz-me proclamar, sem pressa ou arrogância, que sou filha dos livros e da imaginação. E que, a despeito da e terna vigília que perturba o coração dos homens, confio nas atribuições e na soberania da arte. Na perenidade do escritor, aquele nostálgico rapsodo que teima em captar os ruídos dos estertores humanos
Como todos os ilustres confrades, também cheguei à Academia Brasileira de Letras trazida pelo instinto da arte. Esta arte que, cúmplice do desejo coletivo, mobiliza cada ser humano. E revestida da condição de escritora para melhor combinar a arte literária com a apologia da consciência individual e coletiva. São os reclamos humanos que concedem à literatura a proteção do saber, o arrimo da compaixão e da piedade.
Assim, onde esteja, em especial desta tribuna, confesso acreditar na aventura humana, no direito que nos assiste de exaltar, através da narrativa, esta enigmática viagem que encetamos todos em direção ao centro de nós mesmos. Na busca permanente da residência dos nossos alentos.
Uma narrativa que se ampara, e apura-se, no ato, ou no ofício de revelar os homens e a sociedade em que habitamos. Delicado e incerto ofício que conta apenas com a palavra, arma que fere, decepciona, exalta, pensa, surpreende – com a palavra, repito, para iluminar os desvãos da realidade. Graças à palavra, contudo, costuramos os atos humanos e acreditamos na força restauradora do espírito, tão presentes, e sempre reabilitados, nesta Casa de Machado de Assis.
No cotidiano aliás desta Casa, fora e dentro dela, resguardamos o mistério da arte, preservamos o engenho da língua que os homens inventam e refazem em obediência a sua vontade. E sob que forma apresente-se o cotidiano brasileiro, decerto é coral, insubordinado, ressurecto, inquietante, mas ajustado às carências humanas. Subsiste ele em nós pelo vigor com que há um século passa pelo filtro da nossa memória, da nossa reflexão. Desde o nascedouro desta instituição, empenhamo-nos para que o passado, sobras inextinguíveis do presente, não se atomize ao largo da construção das instâncias civilizatórias brasileiras.
A cultura, para a Academia Brasileira de Letras, tem sido uma paixão diária. Em suas paredes ecoa a benfazeja divergência dos postulados estéticos e ideológicos. Estamos cientes de que a cultura capta os instantes dos homens. Uma cultura que não se cristaliza e desafia cada geração com o caos da riqueza e a exuberância do pensamento. A cultura está, entre os homens, para semear a discórdia, o fluxo das emoções desmedidas, mas reveladoras. Habita o homem e extrai-lhe o avesso, suas crateras, o rosto frontal. Não emudece, não recua, não se esconde. Tece simplesmente as intrigas que enlaçam os homens irremediavelmente, e que facilitam, embora de modo fugaz, o mútuo reconhecimento.
Vivemos, nesta Casa, sob o regime da memória. Uma memória que não se deixa abater pelas tentações do esquecimento, não se curva ao comando de que é necessário apagar as lembranças inaugurais a pretexto de erigir discursos triunfalistas, impregnados de inovações transitórias. Não cede à lenta erosão dos dias. Recordar é, para nós, o atributo da sobrevivência moral, sobretudo em face de uma sociedade em ebulição, sob o risco de dispensar registros, emblemas, galardões civilizatórios.
Por força desta irrepreensível vocação para memorizar o mundo, a trajetória da Academia Brasileira de Letras confunde-se com a História do Brasil. Onde encontra-se esta Casa, o Brasil está sempre presente. Coincidimos em múltiplas instâncias. A profunda arqueologia brasileira que deixa à mostra comoventes camadas de enredos humanos, jamais nos faltou. A história da nossa história colaborou em definitivo para fixar as pautas cardinais do nosso espírito.
Assumo, pois, esta Presidência sob o resguardo da honra, do trabalho, da vida comunitária. Pesa sobre mim, nestes instantes, o aviso de que responderei, junto com esta Diretoria, e em estreita aliança com todos os Acadêmicos, pelo difícil e digno dever de conduzir um ano em que celebramos, no dia 20 de julho de 1997, no I Centenário. Uma data de emancipação do nosso espírito, da sabedoria nacional.
Alivia-me saber que fui precedida nesta Casa por notáveis presidentes, com menções especiais para Machado de Assis, e Afrânio Peixoto, que impuseram a seus sucessores uma conduta irrepreensível na condução dos destinos desta instituição. Agindo com probidade, espírito público, estavam convencidos de que, à frente da Academia Brasileira de Letras, defendiam a unidade da língua, as manifestações literárias do Brasil, e os desvãos da civilização brasileira.
Desde a fundação desta instituição, em 1897, somos, e fomos, 251 membros efetivos. Cada qual identificado com as agruras e inquietações de suas respectivas épocas. Todos deixando atrás uma esteira de valiosas contribuições culturais. Por isso cabendo-nos indagar o que seria de nós, brasileiros, se não tivessem eles existido, povoado esta nação de esperanças de virmos a ser um dia a república dos sonhos. Pois como imaginar o Brasil sem eles! Que matéria utópica apresentaríamos a nós, e a nossos filhos, se não pronunciássemos hoje seus nomes em voz alta. Se não lhes oferecêssemos o panteão do mérito.Que língua falaríamos, se não tivessem eles existido. Como pleitear orgulho, ilusão, futuro, símbolos da pátria da alma, se não estiverem eles à nossa frente, ajudando-nos a escorar o Brasil, que é nossa maior invenção coletiva?
E não é verdade que se pronuncio agora o nome de Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Rui Barbosa, Guimarães Rosa, entre tantos outros, todos nesta sala responderão presente!
Ou se evoco a memória do Presidente Austregésilo de Athayde, nela não reconhecemos todos a liga poderosa da nossa comunidade de espíritos?
Ou se volto o meu olhar para o Presidente Josué Montello, não saberemos todos que entre nós está aquele que defendeu e defenderá esta Academia das corrosões do tempo, guardando em si, em sua própria memória, a memória mesma desta instituição?
Quisera ainda celebrar aquele que me precedeu nesta presidência, Antonio Houaiss, buscando em nosso idioma palavras amigas para dizer-lhe a nossa gratidão. Nesse idioma que tem nele o companheiro inseparável, o enamorado cultor, depositário de seus caminhos futuros.
Sou, pois, herdeira do precioso legado de Austregésilo de Athayde, de Josué Montello, de Antonio Houaiss. Deve a estes mestres o agradecimento e lições perenes.
Esta Casa, no seu Centenário, em consonância com seu papel aglutinador de consciência intelectual do país, ambiciona reforçar seus vínculos com instituições brasileiras, em particular com as academias federativas que, ao longo da história, foram salvaguardas, em seus estados, da cultura normativa, nem sempre estimulada. Através delas, dos intelectuais brasileiros de regiões díspares, precisamos forçar o Brasil a conhecer-se, abolindo a rigidez hierárquica e as avaliações apressadas. Que aqui encontrem acolhida os estratos sociais até então alheios à vida acadêmica, convergindo para esta Casa as evidências, os antagonismos culturais, com os quais nos seja dado esboçar o renovado retrato do Brasil. Apontar a má distribuição de renda cultural, ousar olhar de perto o espelho e as deformações da história. O que se reflete nesta superfície, por sinal, diz respeito ao frontispício desta Academia.
Nesta Diretoria, composta pelos ilustres Acadêmicos Arnaldo Niskier, como Secretário-Geral, Antonio Callado, como Primeiro-Secretário, Sábato Magaldi, como Segundo-Secretário, Alberto Venancio Filho, como Tesoureiro. E ainda Geraldo França de Lima, como Diretor da Biblioteca, Evaristo de Moraes Filho, como Diretor do Arquivo, João de Scantimburgo, como Diretor da Revista Brasileira, Eduardo Portella, como Diretor dos Anais da Academia. Enriquecida pelo Conselho de Contas composto dos Acadêmicos Barbosa Lima Sobrinho, Lêdo Ivo e Candido Mendes de Almeida e pelos demais membros desta Casa, nesta Diretoria, sim, prevalece o irrepreensível zelo pela língua, que nos desafia a autoria de um novo Dicionário. Zelo pelo rigor orçamentário, pelo acervo patrimonial, pela Biblioteca e Arquivo, ambos a caminho da imediata informatização. Zelo pela Revista Brasileira, pelos Anais, pelas publicações. Por um Centro de Memória enriquecido por um ativo Banco de Dados, todos a servir de pontes entre tradições centenárias e os apelos do futuro.
Todos juntos querem celebrar este centenário em sintonia com a sociedade. Do mesmo modo como resistimos às intempéries históricas, ocupando nossas cadeiras com uma plêiade de criadores e expoentes, deveremos auscultar, sempre mais, o que a cultura brasileira forjou de mais expressivo.
Quando Machado de Assis, no seu discurso inaugural, confessa que os moços inspiraram a fundação desta Academia, ouso repetir, cem anos mais tarde, que é momento de reduzir a distância que separa os jovens das instituições que os precederam no tempo, forjaram a psique e a cidadania. Afinal a modernidade atribuída aos jovens, não sendo exclusivamente, deve rastrear sua genealogia, de onde provém os subsídios profundos de uma nação. Convém lembrar-lhes que entre nós se abriga um patrimônio intelectual, que pertence à nação brasileira. É momento, pois, de freqüentarem de novo esta Casa, reviverem simbolicamente, junto a nós, outra Semana de Arte Moderna. Poucas coisas são hoje tão brasileiras quanto esta instituição. Forcem, pois, a passagem, batem à porta. Ela está aberta. Hão de recebê-los vivos e mortos.
Recentemente, no México, revelei que o Brasil era minha morada e que eu tinha gosto em servir à literatura com memória e corpo de mulher. E que narrava por ser a minha memória a memória coletiva da minha espécie feminina. Uma memória remota, que esteve presente ao longo da dolorosa peregrinação humana pela terra. Memória que cuidou da história, protegeu os mitos que aquecem as salas, irrigam a imaginação, as lendas, a poesia. De tudo, enfim, que ajudou a suavizar a solidão do homem.
Na pessoa de minha mãe, Carmem Piñon, início de minha viagem, presto tributo a esta memória arcaica.
É como mulher, escritora, cidadã brasileira que hoje, com a ajuda de Deus, dos brasileiros amantes das causas nobres, dos membros desta Casa, que libertos de preconceitos confiaram na minha condição feminina, assumo, comovida, a presidência da Academia Brasileira de Letras.
Muito obrigada.
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