Enem 2022: veja a análise de professores sobre redações nota mil na última edição


Introdução apresentando o tema, repertório cultural integrado ao parágrafo, uso de elementos coesivos: veja os ingredientes-chave usados por 8 alunos que tiraram mil na dissertação. Na última edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), dos mais de 2 milhões de candidatos, só 22 conseguiram tirar nota mil na redação. O que eles fizeram de extraordinário para atingir a pontuação máxima?
A pedido da reportagem, duas professoras de língua portuguesa analisaram oito dessas dissertações (leia as íntegras aqui) e traçaram um raio X: destacaram 9 estratégias seguidas pelos alunos que colaboraram para o sucesso deles. A avaliação foi feita assim que os espelhos da correção da redação foram liberados, em abril, e o g1 a reproduz aqui novamente.
Veja a seguir (e tente se inspirar para a prova deste ano):
1- Introdução no capricho: apresentando o problema logo de cara
O tema da redação do Enem 2021, na aplicação regular, foi “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”.
Veja só a introdução “nota mil” de Giovanna Dias, de 19 anos, e preste atenção aos trechos destacados:
Em sua obra “Os Retirantes”, o artista expressionista Cândido Portinari faz uma denúncia à condição de desigualdade compartilhada por milhões de brasileiros, os quais, vulneráveis socioeconomicamente, são invisibilizados enquanto cidadãos. A crítica de Portinari continua válida nos dias atuais, mesmo décadas após a pintura ter sido feita, como se pode notar a partir do alto índice de brasileiros que não possuem registro civil de nascimento, fator que os invisibiliza. Com base nesse viés, é fundamental discutir a principal razão para a posse do documento promover a cidadania, bem como o principal entrave que impede que tantas pessoas não se registrem.
Giovanna mencionou a obra “Os Retirantes” para apresentar a situação-problema (brasileiros que não têm registro civil e que se tornam, por isso, invisíveis).
“Não é obrigatório colocar algum repertório sociocultural logo na introdução, mas é um ganho e tanto, porque o leitor consegue perceber mais facilmente qual tema será abordado”, explica Marina Rocha, professora de redação do Colégio e Curso AZ.
No fim do primeiro parágrafo, a aluna também adianta o que será desenvolvido no restante do texto: “a principal razão para a posse do documento promover a cidadania” e “o principal entrave que impede que tantas pessoas não se registrem”.
“Antecipar o que vai vir nos parágrafos seguintes representa um bom projeto de argumentação”, acrescenta Bruna Moscardo, professora de redação do Curso Anglo.
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2- Repertório cultural bem integrado ao texto
A seguir, confira dois trechos de redações nota mil com repertórios culturais (citações a livros, pinturas, filmes, filósofos etc):
Fernanda Quaresma: Em “Vidas secas”, obra literária do modernista Graciliano Ramos, Fabiano e sua família vivem uma situação degradante marcada pela miséria. Na trama, os filhos do protagonista não recebem nomes, sendo chamados apenas como o “mais velho” e o “mais novo”, recurso usado pelo autor para evidenciar a desumanização do indivíduo. Ao sair da ficção, sem desconsiderar o contexto histórico da obra, nota-se que a problemática apresentada ainda percorre a atualidade: a não garantia de cidadania pela invisibilidade da falta de registro civil.
Sarah Rosa: O clássico da literatura infantil inglesa “Oliver Twist” aborda as vivências daqueles marginalizados durante a Era Vitoriana e a forma como eram considerados invisíveis por não pertencerem à lógica social. Essa percepção sobre uma parcela considerável da população dialoga, analogamente, com a realidade atual de inúmeros brasileiros que não possuem acesso aos seus direitos civis por não apresentarem os registros primários necessários à inserção como cidadãos no próprio país.
A professora Bruna Moscardo destaca que Fernanda e Sarah não se preocuparam em apenas citar “Oliver Twist” e “Vidas Secas”: elas também estabeleceram uma relação com o número de brasileiros sem acesso a direitos civis.
“Fazer conexões entre o repertório cultural e o tema da redação ajuda a ganhar pontos na competência número 2 [compreender a proposta e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolvê-la]”, afirma.
3- Uso de elementos coesivos
A docente Marina Rocha observa que as oito redações nota mil analisadas usam elementos coesivos ao longo de todo o texto, como “ademais”, “além disso”, “portanto”, “com efeito”, “consequentemente” e “desse modo”.
Veja exemplos:
Giovanna Gamba Dias: Com efeito, nota-se que a importância da certidão de nascimento para a garantia da cidadania se relaciona à sua capacidade de proporcionar um sentimento de pertencimento.
Sarah Fernandes Paulista Rosa: Há, portanto, a urgência de findar essa problemática notória na estrutura do Brasil.
Maitê Maria: Outrossim, é válido destacar a ausência de engajamento social como fator que corrobora a invisibilidade intrínseca à falta de documentação.
4- Propostas de intervenção completas
Todos os textos nota mil analisados apresentam propostas de intervenção completas. Veja um exemplo a seguir, da aluna Evely Lima:
Fica evidente, portanto, a necessidade de garantir o acesso à cidadania para todos no Brasil. Destarte, o Governo Federal, responsável por administrar o povo e os interesses públicos, com o apoio do Ministério da Cidadania, a partir de medidas governamentais destinadas à pasta, deve disponibilizar benefícios financeiros sociais para cidadãos que não tenham como pagar a retirada de um registro civil. Essa ação será realizada com o intuito de custear a posse desse documento importante, para que também a sociedade não naturalize a intolerância que a permeia. Dessa maneira, com a conjuntura de tais ações, os brasileiros verão o direito garantido pela Constituição, como uma realidade.
Ela cumpre os cinco ingredientes obrigatórios ao propor uma solução:
agente: “governo federal, com o apoio do Ministério da Cidadania”
ação: “disponibilizar benefícios financeiros”
detalhamento: “para cidadãos que não tenham como pagar a retirada de um registro civil”
meio de execução: “medidas governamentais destinadas à pasta”
finalidade: “intuito de custear a posse desse documento importante, para que também a sociedade não naturalize a intolerância que a permeia”.
5- Título? Só se for criativo
Sarah Rosa foi a única, na amostra analisada, que escolheu intitular seu texto: “Ser é ser percebido”. É uma frase do filósofo George Berkeley.
Trecho da redação nota mil de Sarah
Reprodução
“Colocar título na redação até é permitido, mas não obrigatório. É uma questão de estratégia, porque você vai ocupar uma linha inteira com isso e talvez perder espaço para fazer uma boa proposta de intervenção, por exemplo”, afirma Marina Rocha.
“Vale a pena quando é um título legal, como o da Sarah, que fugiu do óbvio e ainda citou um repertório cultural ali.”
6- Linguagem formal (sem gírias ou abreviações)
“Muitos alunos, em anos anteriores, estavam abreviando palavras [na redação], por causa do uso do celular, ou escrevendo de maneira muito coloquial, com marcas de oralidade”, afirma Marina Rocha.
“Você não precisa usar mesóclise [colocação pronominal como em ‘pegá-lo-ei’], mas deve seguir um padrão formal no Enem.”
Veja um trecho que evidencia o uso da norma padrão:
Daiane Souza: Diante desse cenário, percebe-se que a invisibilidade acerca da questão do registro civil é motivada pela falta de uma política pública eficaz que regularize essa problemática. Isso ocorre, principalmente, porque, como já mencionado nos estudos da antropóloga Lilia Schwarcz, há a prática de uma política de eufemismos no Brasil, ou seja, determinados problemas tendem a ser suavizados e não recebem a visibilidade necessária.
7- Textos impessoais, sem relatos subjetivos
Vamos supor que o candidato, ao ler a proposta de redação do Enem 2021, tenha se lembrado especificamente do avô paterno, que não foi registrado em cartório. É indicado citar o exemplo no texto? Jamais.
“A dissertação deve ser impessoal. O corretor não deve saber da personalidade do aluno, de onde ele fala, de qual seja a sua história. Não é para falar da própria vida”, explica Rocha.
“O que cabe é montar uma argumentação com leis, fatos históricos, livros, séries, filmes ou conteúdos que defendam uma ideia de maneira não subjetiva.”
A candidata “nota mil” Iasmin Ferreira até pode ter se lembrado de algum problema de formação educacional em sua trajetória, mas escreveu da seguinte forma:
Além disso, é válido ressaltar que a lacuna no sistema de educação potencializa essa conjuntura. Isso acontece porque, desde o século XX, com a implementação de um formato tradicionalista de ensino pelo ex-presidente Vargas, cristalizou-se um modelo educacional que negligencia o aprendizado de temas transversais, a exemplo de concepções básicas da cidadania.
8- Uso inteligente da coletânea de textos
Sempre, na proposta de redação do Enem, a prova traz uma coletânea de textos (tirinhas, mapas, trechos de teses, letras de música) para situar o aluno no tema.
É preciso usar esse material com cautela. O Inep atribui nota zero para quem:
copiar uma sequência de três ou mais palavras iguais às dos textos motivadores ou das questões;
alterar apenas o singular ou plural, ou o tempo verbal dos excertos;
reproduzir as mesmas frases, omitindo apenas algumas palavras ou invertendo trechos.
Mas, calma, não é preciso ignorar esses textos, com medo do “zero”. A professora Moscardo destaca um trecho da redação de Maitê Maria no qual a aluna consegue mencionar uma informação da coletânea de maneira correta:
Coletânea
Texto motivador trouxe informação sobre legislação
Reprodução/Inep
Referência na redação de Maitê:
Nesse sentido, ainda que a gratuidade do registro de nascimento seja assegurada pela lei de número 9.534 da Carta Magna, os problemas associados à documentação civil ultrapassam a esfera financeira, haja vista que a demanda por registros civis é incompatível com a disponibilidade de vagas ofertadas pelos órgãos responsáveis, o que torna o processo lento e burocrático.
“Ela não reduziu a referência só a uma paráfrase. Trouxe o documento jurídico para dar fundamento para a sua ideia”, diz Moscardo.
9- Sem garranchos!
As oito redações nota mil analisadas pelo g1 foram escritas com caligrafia clara. Veja dois exemplos:
Trecho da redação nota mil de Emanuelle
Divulgação
Evely tirou nota mil na redação do Enem
Divulgação
Não adianta seguir todas as outras dicas, arrasar na introdução, elaborar uma proposta de intervenção impecável… mas não ser compreendido pelos corretores do Enem.

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