Quando se pensa na figura materna, a associação é imediata: amor incondicional, dedicação, cuidado. Mas, e quando afeto e acolhimento não existem? Apesar da ideia de uma mãe abusiva ser tão chocante que, para o imaginário coletivo, parece inverossímil, a experiência é bastante real – e dolorosa – para quem vive esse tipo de relação. Em agosto, a ex-atriz infantil Jennette McCurdy, agora com 30 anos, lançou “I´m glad my mom died” (“Feliz porque mamãe morreu”), que imediatamente se tornou um best-seller. No livro, conta que, aos 11 anos, a mãe a submeteu a uma dieta de restrição calórica para que permanecesse franzina, com aparência infantil. Também deu banho nela até os 17 anos e costumava examinar seu corpo de forma inapropriada. No entanto, só teve consciência de que era vítima de uma relação abusiva depois da sua morte, em 2013. “Primeiro fiquei devastada, depois senti uma ponta de alívio, logo seguida de culpa. Procurei ajuda e abandonei a terapeuta quando ela me disse que eu tinha sofrido abuso, porque não podia encarar a verdade”, contou em entrevistas. Jennette deu voz à sua dor numa obra libertadora, mas muitos ainda estão aprisionados neste trauma. Conversei com Simone Domingues, psicóloga especialista em neuropsicologia, com pós-doutorado em neurociências pela Universidade de Lille (França) e uma das autoras do canal @dezporcentomais, sobre o caminho da superação.
Simone Domingues, psicóloga especialista em neuropsicologia: o autoconhecimento abre a alternativa de se construir um caminho próprio e valioso — Foto: Acervo pessoal
O que caracteriza uma relação abusiva?
É o tipo de relação pautada por atos repetitivos com o objetivo de manipular e subjugar através da violência. Violência que pode ser física, com empurrões, tapas, surras; psicológica, com ações e agressões verbais vexatórias, com a intenção de humilhar, de destruturar; ou sexual. Pais e mães se valem de sua autoridade para desvalorizar e desrespeitar esse filho ou filha, não levando em conta as necessidades e os sentimentos da outra pessoa.
Qual é o impacto provocado por esse tipo de relação?
Os pais são muito importantes para a criação da autoestima, para aprendermos a regular nossas emoções. Um indivíduo submisso, que não pode expressar suas opiniões, seus sentimentos, sofre forte impacto na construção da sua autoestima, tem dificuldade em reconhecer seu valor. Se não reconhece seu valor e está acostumado com uma relação na qual o outro é que determina as regras, as chances de embarcar em novas relações abusivas são grandes. A pessoa vai fazer de tudo para ser aceita e amada, o que gera um risco maior de ansiedade, depressão e perfeccionismo, porque acredita que não pode falhar.
Por que a expressão mãe narcisista se tornou popular? Ela é um retrato da relação abusiva?
Aqui vale uma reflexão porque, apesar de ser muito empregada, a expressão vem sendo utilizada erroneamente. A literatura científica não a reconhece. O chamado transtorno de personalidade narcisista tem um padrão caracterizado por um perfil de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia, ou seja, de dificuldade de reconhecer as necessidades do outro. Esse padrão indica uma autoestima vulnerável, que precisa ser alimentada continuamente. Se houver qualquer dúvida ou sinal de que não está sendo admirada, a pessoa sente o golpe – é a ferida narcísica. No entanto, é prevalente em homens, que correspondem a 75% dos casos.
No imaginário coletivo, o espaço da mãe é o do afeto. Isso torna ainda mais doloroso conviver com uma mãe abusiva?
Ouço com frequência no consultório: “do meu pai eu esperaria tal coisa, da minha mãe, não”. Uma falha no que é esperado do papel da mãe amorosa tem um peso enorme. Por trás, há uma equação perversa recorrente. Meninas que sofrem abusos tendem a repetir suas experiências, num processo de mimetismo de negligência, maus-tratos, violência. O autoconhecimento é que vai romper esse ciclo. Todos somos falhos e os filhos vão perceber isso em algum momento, mas podemos nos permitir mudar.
E para quem sofreu os abusos, qual é o caminho?
Primeiro eu gostaria de alertar para a necessidade de criar espaços seguros onde as crianças possam ser acolhidas e se abrir. Boa parte dos relatos de violência cometidos por mulheres surge a partir de relações de confiança da criança com um terapeuta, psicólogo ou professor. Muitas vezes, a saída é o afastamento, é deixar de conviver. O que nos leva a outra situação complicada: quando a mãe abusiva envelhece e precisa de ajuda. É difícil ter o amor ou o cuidado desse filho ou filha se a relação foi pautada pelo medo e pela submissão. O caminho também é o processo de autoconhecimento, com a aceitação da própria história. Quando aceito e entendo que não dá para modificar o que houve, posso construir um caminho próprio e valioso. Posso não ter tido o pai ou a mãe que gostaria, mas me tornar o filho que desejo ser é uma escolha minha. E não perpetuar os erros da minha criação com meus filhos.
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