Momentos depois de apresentar um projeto de lei que proibiria todos os abortos nos Estados Unidos a partir de 15 semanas de gestação, o senador americano Lindsey Graham foi interrompido por uma mãe, que contou uma história devastadora.
“Fiz tudo certo e, com 16 semanas, descobrimos que nosso filho provavelmente não sobreviveria”, declarou Ashbey Beasley a uma sala cheia de pessoas. “Quando nasceu, durante oito dias ele sangrou por todos os orifícios do corpo.”
Mas pelo menos ela tinha uma escolha sobre como lidar com essa gravidez difícil, acrescentou, enquanto a lei de Graham teria tirado essa opção dela.
Graham não é o único legislador que foi questionado sobre sua posição a respeito do aborto e como isso pode afetar mulheres com gestações complicadas ou perigosas.
Desde que a Suprema Corte derrubou a decisão do caso Roe v. Wade em junho, vários Estados americanos decidiram pressionar pela proibição do aborto ou restringir severamente o procedimento.
Com a entrada em vigor dessas leis, surgiram desdobramentos.
Médicos e pacientes dizem que as regras confusas e a linguagem vaga tiveram um efeito assustador nos Estados antiaborto, deixando um rastro de tragédias presentes e futuras.
Abortos por razões médicas são raros e representaram menos de 4% de todos os procedimentos do tipo nos EUA em 2004, de acordo com o Instituto Guttmacher.
Mas, para certas complicações da gravidez, eles são um tratamento aceito e comum para salvar vidas.
A modelo Chrissy Teigen, por exemplo, disse em 7 de outubro que passou por um aborto que salvou a vida dela quando estava com 20 semanas de uma gravidez inviável.
Mas hoje, em Estados com limites rígidos ao aborto, essa opção de procedimento está se tornando cada vez mais difícil.
No ano passado, Amanda Horton, uma médica do Texas especializada em gestações de alto risco, teve problemas para cuidar de pacientes com complicações na gravidez.
Em algumas ocasiões, Horton precisa informar às famílias que os bebês foram diagnosticados com alguma anomalia que é fatal.
Esses distúrbios são raros e provavelmente levarão à morte do feto no útero ou logo após o nascimento.
Mas sob uma proibição estrita do aborto no Texas, as mãos da médica estão atadas.
“O que podemos dizer é: ‘Se você está interessada em interromper a gravidez, isso é sempre uma opção. Mas não se você está no Texas’. E é aí que o aconselhamento começa e termina”, relata.
“São pessoas que amam os filhos ainda não nascidos e que, sem culpa, estão sendo desafiadas de maneiras que nunca esperaram”, diz.
E porque o Estado em que vivem proíbe todos os tipos de aborto, “agora a resposta é: ‘Não podemos ajudá-la, boa sorte'”, acrescenta a especialista.
O Texas tem uma das proibições de aborto mais restritivas dos EUA. Mas, mesmo com todas os vetos aprovados este ano, o Estado ainda permite uma exceção quando a gravidez coloca em risco a vida da mãe.
De fato, todos os Estados que proíbem o aborto incluem exceções semelhantes quando a vida da mulher está ameaçada.
Cerca de uma dúzia de leis estaduais incluem uma permissão a abortos de “emergência médica”, e três possuem uma exceção específica para anomalias fetais.
Na Virginia Ocidental, que acaba de aprovar a proibição do aborto, o procedimento só não é vetado em caso de “emergência médica ou um feto clinicamente inviável”.
A proposta de Graham para uma lei nacional sobre o tema também viria com isenções amplamente redigidas para mulheres “cujas vidas estão em perigo”.
No entanto, os críticos dizem que, na prática, essas leis fornecem pouca orientação sobre termos amplos como “ameaça à vida” ou o que constitui uma emergência médica que realmente permitiria um aborto.
Isso deixa amplo espaço para o debate sobre quando um médico deve agir e, em alguns casos, até inibe a escolha de opções que seriam consideradas como padrão de atendimento.
O senador dos EUA Lindsey Graham propôs um projeto de lei que proibiria todos os abortos nos EUA em 15 semanas — Foto: GETTY IMAGES
Em julho, uma mulher do Texas, identificada apenas como Amanda, disse ao jornal The New York Times que passou 48 horas em agonia, sentada em uma banheira enquanto a água ficava “vermelha escura” e esperava que seu corpo expelisse o feto naturalmente, num aborto espontâneo.
Anteriormente, ela teve outro aborto espontâneo. À época, os médicos a submeteram a um procedimento de dilatação e curetagem, no qual o tecido é removido do útero.
Já nesse segundo episódio, o Texas havia implementado uma lei que permite processar qualquer pessoa que ajude alguém a realizar um aborto após seis semanas de gravidez.
Amanda então não passou pelo procedimento de dilatação e curetagem.
“Foi tão diferente da minha primeira experiência, onde eles foram gentis e tranquilizadores. Agora me senti sozinha e aterrorizada”, relata.
Esses casos expuseram a lacuna que existe entre as políticas escritas sobre os limites do aborto e a realidade, o que preocupa os médicos.
“É muito perigoso quando legisladores que não têm formação na área criam leis sobre como podemos praticar a medicina e nos proíbem de fornecer os cuidados necessários”, critica Daniel Grossman, obstetra da Universidade da Califórnia, em San Francisco.
Muitas das proibições são inspiradas em um projeto de lei proposto pelo National Right to Life (NRL), a mais antiga organização antiaborto do país.
A legislação modelo do grupo só permite abortos quando a vida da mãe está em perigo.
“A linguagem de nossa proposta diz ‘julgamento médico razoável’ pelo responsável, que é o caso usual em todas as situações médicas, não apenas em abortos”, disse a NRL à BBC News em um comunicado.
“Não temos conhecimento de nenhuma legislação pró-vida, incluindo nossa lei modelo, que impeça o tratamento médico adequado em nenhum desses casos”, continua o texto.
Mas para as pessoas que enfrentam uma gestação complicada, essas leis podem realmente atrapalhar os cuidados de saúde.
Na Louisiana, a história de Nancy Davis ganhou as manchetes nacionais depois de ela divulgar que os médicos não interromperiam sua gravidez inviável.
Em uma entrevista coletiva, Davis reveleu a repórteres que seu bebê tinha acrania, um distúrbio que faz com que um feto se desenvolva sem o crânio, condição que é incompatível com a vida.
“Basicamente, eles disseram que eu tinha que continuar a gravidez e enterrar meu bebê”, disse.
Ela acrescentou que os médicos “pareciam confusos com a lei e com medo do que aconteceria se realizassem um ‘aborto criminoso'”.
“Quero que vocês imaginem como foi continuar a gravidez por mais seis semanas após esse diagnóstico”, complementou.
“Isso não é justo para mim, e não deveria acontecer com nenhuma outra mulher.”
Na Carolina do Sul, Neal Collins, um senador Estadual do Partido Republicano, ganhou destaque por confessar que se arrependeu de votar a favor da proibição do aborto a partir das seis semanas, depois que um obstetra local contou a ele a história de uma garota de 19 anos que passou por uma experiência angustiante, em que foi negado o atendimento médico.
“A semana toda eu não dormi”, contou Collins em um discurso ao comitê judiciário estadual.
Ele disse que fez o acompanhamento do caso e, duas semanas depois, o pronto-socorro conseguiu “extrair” o feto, mas somente depois que ele estava morto.
Dias depois de se arrepender, Collins votou por uma proibição quase total do aborto, que inclui uma lista de uma dúzia de situações que se qualificam como exceções.
No mês passado, depois que Davis abortou, o Departamento de Saúde da Louisiana divulgou uma lista de condições que tornariam uma gravidez “medicamente supérflua” e que se qualificariam como uma exceção à proibição do procedimento no Estado.
Mas Grossman diz que é impossível listar as condições que atendem à exceção de “emergência médica”.
“Não funciona assim. Na medicina há muitas incertezas e áreas cinzentas”, diz.
“Caso exista uma probabilidade de 20% de morrer no próximo mês se a gravidez continuar, esse é um risco tremendamente alto. O atendimento médico necessário seria oferecer a essa paciente a interrupção da gravidez”.
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