Como estratégia sul-coreana que impulsionou k-pop e cinema pode inspirar o Brasil | Pop & Arte

Rose Costa tem 56 anos, uma filha de 24, é professora de língua portuguesa do ensino médio e moradora de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ela sabe que seu perfil não corresponde ao público mais típico do k-pop, mas fala com orgulho que se considera uma aroha, ou seja, uma seguidora devota da boy band sul-coreana Astro (da mesma forma que os fãs do BTS, o grupo mais famoso do k-pop, são chamados de army, exército).

“Durante a pandemia comecei a assistir a uns doramas [termo japonês às vezes usado para novelas coreanas, embora alguns prefiram k-dramas]. Eu gosto de uma boa história. Vi o primeiro, o segundo e o terceiro dorama e, caramba, de repente virou um vício. Foi a minha porta de entrada para o k-pop.”

Ela conta que suas séries coreanas favoritas são Hae-Ryung, a Historiadora e True Beauty, ambas estreladas pelo ator e cantor Cha Eun-woo — justamente um dos integrantes do Astro.

O perfil de fã fora da curva de Rose é uma das diversas mostras de como a cultura pop da Coreia do Sul continua a sedimentar sua influência pelo mundo.

Há poucos dias, Round 6 se tornou a primeira série falada em um idioma diferente do inglês a vencer dentro das categorias mais importantes do Emmy, principal troféu da TV norte-americana. Em 2019, Parasita provocou um impacto de magnitude ainda maior ao ganhar o Oscar de melhor filme, a principal estatueta da noite.

Também recentemente o k-pop virou um fundo de investimentos negociado em bolsa de valores junto a um índice que acompanhará o desempenho de 30 empresas de entretenimento do país asiático. É um sinal de que muitos apostam em espaço para expandir a popularidade do gênero.

A Coreia do Sul é citada recorrentemente como um exemplo de sucesso na indústria criativa, com resultados consideráveis para a economia local.

Levantamento da Kofice (Fundação Coreana para o Intercâmbio Cultural Internacional) aponta que exportações ligadas a conteúdos produzidos pelo país atingiram US$ 11,69 bilhões no ano passado, incluindo o setor de games, que possui um peso substancial nessa conta.

Mais do que os números, há um efeito cascata do fenômeno mundial: com o interesse pelo país em alta, o turismo teve um salto.

Há mais demanda internacional pela gastronomia e por produtos alimentícios locais — vide pessoas indo a mercadinhos do bairro paulistano do Bom Retiro, que concentra a comunidade coreana, à procura do biscoito dalgoná de Round 6.

Até a indústria da maquiagem sul-coreana vem prosperando — afinal os rostos do k-pop e das séries de TV estão provocando mudanças no padrão de beleza internacional, antes fixado em traços ocidentais.

Tudo isso resulta no chamado soft power: sem uso da força, a Coreia do Sul está ascendendo no cenário internacional e com uma imagem simpática e atraente dentro de diferentes países, do Vietnã ao Brasil, passando por EUA e Alemanha.

Essa trajetória é ainda mais surpreendente porque, até a década de 1960, Coreia do Sul era uma nação pobre e subdesenvolvida.

Sua produção cultural era tímida, à sombra do vizinho e antigo invasor Japão, até que nos anos 1990 o setor local ganhou papel de destaque entre os objetivos do governo. A ideia era dinamizar sua economia. Investimentos cresceram e ações estatais facilitaram o trabalho de quem atuava na área.

O Brasil, que já experimentou no passado êxito mundial tanto na música (a bossa nova na década de 1960) como nas novelas (Escrava Isaura foi hit na Rússia e na China entre os anos 1980 e ajudou a sedimentar a fama brasileira no ramo), poderia alavancar os potenciais adormecidos de sua indústria criativa ao adotar conceitos da política sul-coreana?

Pesquisadores sul-coreanos que analisaram a hallyu — “onda coreana” — dizem que políticas culturais bem planejadas e bem aplicadas sempre ajudam.

No entanto, alguns enfatizam que o fenômeno só alcançou essa dimensão por causa de uma conjunção mais complexa de fatores.

Confira abaixo como foi essa trajetória sul-coreana e também o que brasileiros que lidam com políticas culturais opinam sobre possíveis lições para o país.

Boneca de ‘Round 6’ surge em parque em Seul

Como foi construído o caminho

O século 20 foi especialmente difícil para a península coreana. Foram 35 anos de uma cruel ocupação japonesa seguida de um conflito armado entre as partes norte e sul do território. Era o pano de fundo da nascente Guerra Fria entre as potências Estados Unidos e União Soviética. Só entre civis, 2,5 milhões de pessoas morreram na Guerra da Coreia.

A seguir, os sul-coreanos ficaram sob regimes militares por quatro décadas, período em que a censura controlava atividades culturais. A volta de governos eleitos democraticamente no final da década de 1980 também significou a liberação da produção artística, algo importante para a onda coreana tomar forma depois.

Mas a principal razão para o governo voltar os seus olhos para a cultura naquela época foi a economia, especialmente após a crise financeira asiática de 1997. O país tentou diversificar seus negócios, concentrados na manufatura, e apostou na indústria criativa.

Alessandra Meleiro, presidente do Instituto das Indústrias Criativas e professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), cita o “caso Jurassic Park” para ilustrar o que chamou atenção dos políticos locais.

O primeiro filme da série blockbuster, dirigido por Steven Spielberg em 1993, foi citado em um relatório governamental por ter sua bilheteria equivalente à venda de 1,5 milhão de carros da Hyundai.

Além do potencial como indústria criativa, havia a questão de como a produção cinematográfica nacional tinha pouco espaço.

“Esse filme ocupou todas as salas de cinema da Coreia do Sul por três meses. A coisa foi tão gritante que esse fenômeno de ocupação das salas ligou o sinal de alerta de que alguma política protecionista tinha que ser criada. Então foram adotadas cotas de tela [estabelecimento de um percentual mínimo de produção audiovisual nacional]”, diz.

Meleiro conta que a mesma política teve efeitos distintos em um primeiro momento.

“No cinema foi um tiro no pé porque eram feitos filmes de baixa qualidade, só para cumprir o requisito de investir em produção nacional. Mas para a TV aberta e TV paga, essa política ampliou o leque de janelas e, portanto, de possibilidades de produção independente. Isso aconteceu no Brasil, com uma lei semelhante, em 2011.”

O cinema, como já mencionado, viria a dar frutos mais para frente. Desde o cult Oldboy (2003), do diretor Park Chan-wook, até Bong Joon-ho fazer história com Parasita.

Esta cena de ‘Parasita’ virou símbolo da raiva com a desigualdade econômica na Coreia do Sul e no resto do mundo — Foto: Divulgação

O k-pop foi tratado como produto de exportação. O Ministério da Cultura foi reestruturado para trabalhar a divulgação de seus artistas. Adotou ações como distribuir milhares de CDs de k-pop a potenciais clientes de mercados internacionais e estimular a participação de empresas de entretenimento em feiras no exterior.

O governo organizou e promoveu no ano de 2000 um show da boy band H. O. T. (Highfive of Teenagers) na China. O poderoso vizinho acabou se tornando um dos lugares onde os idols do k-pop criaram seus primeiros fandoms. Por sinal, o termo mais usado para o fenômeno, hallyu, é uma palavra de origem chinesa e não coreana.

E com a cultura no alto da agenda do governo, obstáculos eram desemperrados na burocracia quando necessário.

O foco se intensificou nos governos seguintes. O presidente sul-coreano da virada do século, Kim Dae-jung, se autoproclamou o “presidente da cultura” e introduziu mais medidas para promover de forma agressiva o setor.

Em 2012, a indústria pop do país tomava de assalto o mundo. O vídeo de Gangnam Style, do cantor Psy, subia no YouTube para quebrar recordes e se tornar o mais visto de todos os tempos por anos — hoje tem 4,5 bilhões de views e é o 10° da lista.

No topo agora está Babyshark, da empresa Pinkfong, que é… sul-coreana.

‘Gangnam Style’ completou 10 anos em 2022 — Foto: GETTY IMAGES via BBC

Jungsoo Kim, professor de administração pública na Universidade Hanyang, de Seul, faz um contraponto. Ele defende em um estudo que houve quatro fatores para o fenômeno sul-coreano com tanto peso quanto a ação governamental:

  • a competitividade da cultura coreana;
  • mudanças políticas e econômicas em vizinhos da Ásia na década de 1990;
  • um mercado bem formado de empresas de entretenimento na Coreia do Sul na época;
  • a expansão da tecnologia e da internet que levou a uma era dominada pelo consumo de vídeos e de imagens

“O mundo da cultura e da arte é muito complexo para ser entendido com um único e simples modelo causal. A real causa do sucesso atual dos K-conteúdos no mercado global é ainda incerto”, diz Kim à BBC News Brasil.

Ele escreve em seu trabalho: “Construir políticas culturais é como jogar sementes na terra: não se sabe com antecedência qual delas vai frutificar”.

O primeiro item da lista de Kim é um dos pontos em que a indústria musical local sofre críticas. O k-pop se desenvolveu em torno da cultura do idol, com competições em que jurados e olheiros escolhiam os melhores candidatos à estrela.

Além do questionamento “é produto ou cultura?” que alguns críticos fazem, esse cenário de competição asfixiante, em que quase tudo é calculado para entregar o melhor artigo pop, cria uma atmosfera de pressão para chegar e se manter no topo — é conhecida a questão sobre a saúde mental entre grande nomes do gênero.

“Esse tipo de preocupação já foi levantada frequentemente na nossa sociedade. Mas não durou muito e não foi forte o suficiente para o governo fazer algo a respeito. Talvez o público em geral tenda a gostar do produto e esquecer de todo o processo”, afirma Kim.

Como gestores brasileiros veem essas políticas

O modelo de sucesso da Coreia do Sul chegou a ser citado pelo candidato presidencial Ciro Gomes (PDT). Em outubro de 2021, ele publicou um post com elogios aos investimentos públicos do país asiático na área, citava BTS, Round 6 e Parasita e criticava a decisão do governo Jair Bolsonaro de extinguir o Ministério da Cultura, reduzido a uma secretaria ligada à pasta do Turismo.

A BBC News Brasil entrou em contato com a Secretaria de Cultura do governo federal e o Planalto para saber se as políticas sul-coreanas poderiam servir de inspiração ao país e se a extinção do MinC prejudicou o setor cultural, mas não obteve resposta.

Segundo o site Tela Viva, que acompanha o mercado de mídia, o atual presidente da Ancine (Agência Nacional de Cinema do governo federal), Alex Braga Muniz, manifestou no evento Pay-TV Forum 2022 de agosto que tem simpatia pela adoção do modelo sul-coreano.

À reportagem da BBC Brasil, Muniz afirma que “a política sul-coreana é baseada em três eixos: inovação, incentivos e regulação, e é justamente nesses eixos que pretendemos desenvolver a política audiovisual brasileira”.

“Audiovisual é entretenimento, e entretenimento é indústria de inovação. No campo da atuação, pretendemos uma política industrial, voltada para a ocupação de mercado e para a internacionalização do conteúdo.”

O grupo Blackpink, um dos mais populares do k-pop, durante apresentação no festival norte-americano Coachella — Foto: GETTY IMAGES via BBC

Ele diz que a Ancine lançou em 5 de maio último “uma linha de crédito de R$ 215 milhões para estimular a aceleração do crescimento do setor audiovisual com foco em novas tecnologias, inovação e acessibilidade e capital de giro”.

Segundo Muniz, a agência vem retomando políticas de leis de incentivo — mecanismo normalmente criticado pela base bolsonarista, como foi o caso da Lei Rouanet.

“O fomento indireto é de fundamental importância para o desenvolvimento da atividade audiovisual, característica evidente da política sul-coreana, a partir dos mecanismos de incentivo”, diz.

“A eficiência dos mecanismos de incentivo brasileiros é historicamente comprovada em bilheteria e audiência. É a partir dos mecanismos de incentivo que as programadoras começam a planejar lançamentos simultâneos de filmes e séries também nas suas plataformas de streaming.”

Meleiro, da UFSCar, analisa que “a nossa a nossa lei de incentivo está completamente voltada para o fomento à produção. Lá na Coreia do Sul foi para resolver uma questão estrutural, para a melhoria de infraestrutura da indústria: salas, parque tecnológico, câmeras, estúdios, equipamentos. Ou seja, eles qualificaram o parque produtor”.

Os gestores anteciparam os desafios que o produto sul-coreano encontraria no mercado internacional: “Eles questionaram ‘como melhorar entrega das cópias que vão circular externamente? Como melhorar os efeitos de som e música aqui gravados separadamente do diálogo de forma a pensar na exigência desse mercado internacional [para a dublagem]'”.

Houve também, diz ela, uma visão transversal do governo sul-coreano que estabeleceu pontes entre o Ministério da Cultura e as pastas da Educação e das Finanças para alcançar esses resultados.

O diretor da Ancine, por sua vez, afirma que a agência “abriu consulta pública para regulamentar o financiamento a projetos de capacitação. O objetivo é estimular a infraestrutura técnica voltada para formação e capacitação de mão de obra para a cadeia produtiva do audiovisual”.

Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura nos governos Lula e Dilma, afirma que “a economia da cultura é uma das mais promissoras do mundo: mais dinâmica, mais rápida, com menos tendência a decrescer. Pelo contrário, ela vem num crescimento vertiginoso, mesmo nos momentos de crise de outros aspectos da economia mundial”.

No entanto, em sua visão é necessário um equilíbrio entre o comercial e o cultural.

“A economia da cultura precisa garantir uma harmonia e um equilíbrio entre o valor de uso e o valor de troca das mercadorias e dos produtos culturais”, diz.

“O capitalismo tende a mercantilizar tudo, mas esse processo de mercantilização dos conteúdos culturais precisa ter o contraponto das políticas que garantam a complexidade e a profundidade do ato criativo como a dimensão necessária da dinâmica social e individual dos cidadãos e cidadãs. Isso é uma política complexa que precisa ser desenvolvida. Senão vira banalização.”

Ferreira diz que não fala em “repressão à dimensão econômica”, mas defende que o Estado precisa evitar o “extrativismo exploratório”.

“Trabalhar profundamente a questão da memória e do patrimônio cultural e estimular a produção cultural das manifestações tradicionais garantem a base do processo de produção cultural do país. Tudo isso é o que garante que a pujança de uma economia venha acompanhada de crescimento e desenvolvimento da cultura.”

No caso da professora Rose Costa, a indústria pop sul-coreana serviu de porta de entrada para o elemento mais básico da cultura do país: o idioma, que ela começou a estudar.

“É nível básico ainda, mas a gente vai começando a identificar algumas expressões bem características. A questão dos honoríficos, dos títulos, os graus de formalidade e de informalidade. É muito bonito isso na cultura deles, o quanto que valorizam e respeitam a idade e a experiência daquela pessoa.”

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