Título: Ana canta Cássia – Estranho seria se eu não me apaixonasse por você
Local: Qualistage (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 14 de outubro de 2022
Cotação: ★ ★ ★ ½
♪ Para quem emergiu gélida há quatro anos, na cena abrandada pela quentura artificial do show Fogueira em alto mar (2018), Ana Carolina até que conseguiu reacender a velha chama ao cantar o repertório de Cássia Eller (10 de dezembro de 1962 – 29 de dezembro de 2001) sob a direção de Jorge Farjalla.
Ana está cantando Cássia como Ana, sem procurar imitar Cássia e, por isso mesmo, sem jamais ser assombrada pelo fantasma do cover. Isso fez com quem vícios e virtudes da intérprete se alternassem no show povoado por projeções e por áudios com falas avulsas de Cássia.
Estreado em São Paulo (SP) em 22 de setembro, o show Ana canta Cássia – Estranho seria se eu não me apaixonasse por você aterrissou ontem, 14 de outubro, com o mesmo roteiro da estreia nacional da turnê, no palco da casa Qualistage, no Rio de Janeiro (RJ), cidade natal de Cássia em que Ana reside desde fins da década de 1990. Cidade onde Ana foi abrigada na casa da “ídola” Cássia ao fazer o primeiro show no Rio, como a artista contou com humor à plateia do Qualistage.
Projetada em 1999, quase uma década após a antecessora ter tido a carreira impulsionada em 1990, Ana Carolina sempre foi conectada a Cássia Eller pela intensidade do registro vocal. Contudo, enquanto a cantora carioca embutia no canto o desespero do blues, a rebeldia do rock e o inconformismo dos artistas fora dos padrões, a intérprete mineira sempre ardeu na passionalidade da canção popular romântica de sentimento exacerbado, tangenciando o universo rotulado como kitsch por elites culturais que abarcam os críticos de música.
Ana Carolina canta músicas de Caetano Veloso, Chico Buarque, Nando Reis, Renato Russo e Rita Lee para celebrar Cássia Eller — Foto: Barbara Furtado / Dantas Jr. / Qualistage
Todas essas dissonâncias saltaram aos ouvidos, entre afinidades entre as cantoras, quando Ana deu a voz quente a 25 músicas gravadas pela colega entre 1990 e 2001, ano em que Cássia saiu precocemente de cena, aos 39 anos (o bis foi reservado ao canto dos quatro maiores sucessos da discografia da própria Ana).
Se a canção Relicário (Nando Reis, 2000) teve a delicadeza parcialmente diluída pela elevação de tons que fizeram o canto soar como grito (vício de Ana) e se a balada O segundo sol (Nando Reis, 1999) resultou sem o brilho habitual, mostrando que algo se perdeu na transposição das músicas de uma para a voz de outra, Ana Carolina em contrapartida redimensionou o samba Nós (Tião Carvalho, 1988) – na cadência flamenca herdada do arremate do número anterior, Milagreiro (Djavan, 2001), com percussão incendiária – e caminhou com segurança na pisada nordestina em que encadeou o medley com Aprendiz de feiticeiro (Itamar Assumpção, 1999), Coroné Antonio Bento (João do Vale e Luiz Wanderley, 1970) e Quando a maré encher (Fábio Trummer, Roger Man e Bernardo Chopinho, 2000).
Do ponto de vista do repertório, o show é o melhor de Ana Carolina, já que, fora do trilho autoral, a cantora escapou da irregularidade do próprio cancioneiro, que foi perdendo viço ao longo dos anos 2000.
O roteiro do show Ana canta Cássia resultou bem alinhavado, aliás, mas com peculiaridades. De cara, Ana Carolina queimou cinco cartuchos, alinhando os maiores sucessos de Cássia – Malandragem (Roberto Frejat e Cazuza, 1994), E.C.T. (Marisa Monte, Nando Reis e Carlinhos Brown, 1994), O segundo sol, All star (Nando Reis, 2000) e Relicário – na sequência inicial do show. Como se quisesse logo ganhar o jogo e a plateia.
Hábil no toque do pandeiro, Ana deitou e rolou no bloco dedicado ao samba, cuja cadência embasou a abordagem de Gatas extraordinárias (Caetano Veloso, 1999). Nesse bloco, Ana foi da levada carioca de Partido alto (Chico Buarque, 1972) à manemolência baiana de Vá morar com o diabo (Riachão, 2000), com direito à citação do refrão de Não deixe o samba morrer (Edson Conceição e Aloísio Silva, 1975).
Ana também soube dar a devida potência aos rocks Todas as mulheres do mundo (Rita Lee, 1993) e Top top (Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias, 1971), ambos com a assinatura da primeira-dama brasileira do gênero, Rita Lee, admiradora de Cássia.
Ana Carolina deita de cabeça para baixo na escada do cenário do show em que canta o repertório de Cássia Eller — Foto: Barbara Furtado / Dantas Jr. / Qualistage
O único problema estrutural do roteiro residiu no número final. O dueto virtual de Ana e Cássia na balada Por enquanto (Renato Russo, 1985) surtiu pouco efeito, falhou como o gran finale e, pior, acabou sem deixar claro que o show tinha chegado ao fim, ainda que a cantora tenha dado boa noite ao público.
O canto de Eu queria ser Cássia Eller (Péricles Cavalcanti, 1999) no molde acústico com que Ana Carolina brilhou ao interpretar Mercedez benz (Janis Joplin, Michael McClure e Bob Neuwirth, 1971) talvez resultasse em fecho mais adequado pelo toque de ironia.
Afinal, o orgulho com que Ana apresentou inédita balada composta com Bruno Caliman – Coisa minha, coisa tua, (in)justificada no roteiro como “homenagem” a Cássia – sinalizou que Ana Carolina sempre quis ser mesmo Ana Carolina… No que está muito certa, porque, embora Ana até tenha se deitado de cabeça para baixo na escada do cenário em determinado momento do show, o canto de Maluca (Luís Capucho, 1993) deixou claro que a passional cantora jamais poderia trilhar as vias marginais por quais Cássia Eller andou, driblando sucessivas tentativas de domesticação pelos executivos da indústria do disco.
Mal nenhum há no caminho escolhido por Ana. Estranho seria se Ana tentasse cantar Cássia como Cássia. Como Ana cantou Cássia como Ana, a cantora conseguiu reacender a velha chama que já parecia apagada no show Fogueira em alto mar.
Ana Carolina eleva os tons ao dar voz ao repertório de Cássia Eller em show na casa carioca Qualistage — Foto: Barbara Furtado / Dantas Jr. / Qualistage