Com repertório politizado e poético, o disco de 1972 tem sonoridade elétrica produzida a partir do entrosamento do artista com os músicos Lanny Gordin e Tutty Moreno. Capa do álbum ‘Jards Macalé’, de 1972
Luciano Clark com arte de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos
♪ MEMÓRIA – “E eis que o anjo me disse / Apertando a minha mão / Entre o sorriso de dente / Vá, bicho, desafinar os contentes”, canta Jards Macalé, dando voz aos versos de Let’s play that (1972), música em cuja letra Torquato Neto, (1944 – 1972), poeta parceiro do compositor carioca no tema, parafraseia versos do Poema de sete faces (1930) de outro grande poeta, Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987).
Let’s play that é uma das 11 músicas ouvidas nas nove faixas de Jards Macalé, álbum de 1972 que completa 50 anos em 2022 como a bússola que ainda norteia o movimento dos barcos no curso da vida de Jards Anet da Silva, personificação musical do anjo torto do poema de Drummond evocado por Torquato.
Nascido em 3 de março de 1943, Jards Macalé tinha 31 anos e apenas um EP – Só morto / Burning night, de 1969, ano em que o artista assombrou o público com a performance de Gothan city (Jards Macalé e José Carlos Capinan, 1969) no IV Festival Internacional da Canção (FIC) – quando gravou e lançou esse primeiro álbum em 1972.
Com repertório que hoje bem pode ser qualificado como um greatest hits do cancioneiro autoral de Macalé, o disco foi editado pela gravadora Philips com produção do empresário Guilherme Araújo (1936 – 2007). É disco de trio, feito sob direção musical do próprio Macalé com Lanny Gordin no baixo elétrico e no violão de aço tocado como guitarra e com Tutty Moreno na bateria, além do violão de Macalé.
É da fricção e sintonia entre os três músicos – percebidas na execução de músicas como a já mencionada Let’s play that – que se alimenta o álbum Jards Macalé com a eletricidade de som pautado por mix de rock, samba, canção, blues, jazz e baião.
A pisada do baião, por exemplo, norteia passagens de Revendo amigos (1972), faixa que embute o canto a capella de Vapor barato (1971), duas composições da parceria de Macalé com o poeta Waly Salomão (1943 – 2003).
A escrita do álbum Jards Macalé foi pautada pela efervescência de poetas parceiros como Torquato, Waly e José Carlos Capinan, autor da letra de Farinha do desprezo (1972), música que abre o disco com pegada sinuosa, marcada pelas quebradas da bateria de Tutty Moreno.
Craque das baquetas, Tutty tinha estado com Macalé no segundo álbum gravado por Caetano Veloso no exílio em Londres, Transa, disco feito sob a direção musical de Macalé – não devidamente creditado na época – e lançado em maio de 1972.
O fato de a gravadora de Caetano na época, a poderosa Philips, ter aberto as portas para Macalé é efeito do trabalho do artista em Transa e também da interferência direta do empresário Guilherme Araújo. No fim das contas, o emblemático Transa gerou indiretamente outro dos álbuns mais importantes da MPB dos anos 1970.
Ilustração da contracapa do álbum ‘Jards Macalé’, de 1972
Arte de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos / Reprodução Facebook Jards Macalé
Através de músicas como Hotel das estrelas (Jards Macalé e Duda Machado, 1970) – citada no arremate do disco – e Mal secreto (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971), ambas apresentadas ao Brasil na voz cristalina de Gal Costa (1945 – 2022), musa da contracultura naquela época, o disco Jards Macalé captou bem o momento sombrio e claustrofóbico atravessado pelo país, então sob o jugo da ditadura militar instaurada em 1964 e arrochada em 1968.
Anjo torto, Macalé desafinou o coro dos contentes com este disco cheio de subtextos e metáforas no lapidar repertório poético, alinhavado pelo compositor desde 1967. A musicalidade densa e tensa do álbum sublinha todo o contexto político das letras.
Como Transa, Jards Macalé é disco de banda. Basta ouvir 78 rotações – parceria então inédita de Macalé com o poeta baiano José Carlos Capinan – para perceber toda a pujança e inventividade do trio formado por Macalé com Lanny Gordin e Tutty Moreno.
Capinan, aliás, é parceiro de Macalé em outras duas músicas do disco, Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata (1972) – enviesado samba-canção cuja letra versa sobre sombrias ambiguidades afetivas – e Movimento dos barcos (1972), marco lírico de cancioneiro reunido por Macalé neste disco contundente em que até as artes da capa e contracapa – criações de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos, também idealizadores da máscara que cobre o rosto de Macalé na foto de Eduardo Clark exposta na capa – traduzem o espírito musical e político do LP editado em 1972 com duas músicas fora da seara autoral de Macalé.
Faixa que exemplifica a eletricidade do roqueira do disco, Farrapo humano (1972) é de Luiz Melodia (1951 – 2017), compositor carioca afinado com Macalé por também sido orgulhosamente gauche na vida. Na costura do disco, Farrapo humano é música amalgamada com A morte (1972), samba-canção de Gilberto Gil, nunca gravado pelo autor (somente Ava Rocha revisitou A morte em disco em tributo a Macalé).
Decorridos 50 anos, o álbum Jards Macalé é mote de show – apresentado por Macalé no Circo Voador (RJ) na madrugada deste sábado, 26 de novembro de 2022 – por conservar o vigor e ainda se impor como o melhor disco do artista, o título mais relevante de discografia que nunca perdeu o prumo no movimento dos barcos da música brasileira.
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