Resenha de documentário musical da 24ª edição do Festival do Rio
Título: Elis & Tom – Só tinha de ser com você
Direção: Roberto de Oliveira
Roteiro: Roberto de Oliveira e Nelson Motta
Produção: Rinoceronte Entretenimento
Cotação: ★ ★ ★ ★
♪ Como ressalta João Marcelo Bôscoli em depoimento para o documentário Elis & Tom – Só tinha de ser com você, atração da mostra Première Brasil – Retratos da 24ª edição do Festival do Rio, um dos maiores álbuns da música brasileira quase deixou de existir.
Ao saber que Elis Regina (17 de março de 1945 – 19 de janeiro de 1982) já estava de malas prontas em Los Angeles (EUA) para voltar para o Brasil, irritada com os rumos da gestação do disco gravado de 22 de fevereiro a 9 de março de 1974 no MGM Studios, Roberto Menescal – então no posto de diretor artístico da gravadora Philips – pegou às pressas um avião para apagar o incêndio que consumia os ânimos e resistências de Elis e de Antonio Carlos Jobim (25 de janeiro de 1927 – 8 de dezembro de 1994), com quem a cantora dividia o álbum.
Com diplomacia, Menescal e Roberto de Oliveira – empresário de Elis na época – controlaram as chamas. O disco foi finalizado e, em agosto daquele ano de 1974, o álbum Elis & Tom chegou ao mundo e, desde então, figura em qualquer antologia fonográfica brasileira.
Ao revitalizar as belezas e tensões do disco Elis & Tom, o documentário dirigido por Roberto de Oliveira e roteirizado pelo mesmo Roberto – em parceria com Nelson Motta – reconta história já narrada em biografias e programas de TV. Mas o filme tem como trunfo as imagens da gravação do disco em Los Angeles, captadas no estúdio da MGM por Jom Tob Azulay e restauradas em tecnologia de alta definição 4k para o documentário produzido por Diogo Pires Gonçalves pela empresa Rinoceronte Entretenimento.
Exibidas originalmente pela TV Bandeirantes em especial posto no ar em 1974 e reprisado em 1992 (dentro das comemorações dos 25 anos da emissora), essas imagens se tornaram raras desde que foram retiradas recentemente do YouTube, restando somente fragmentos com um take da gravação de Corcovado (Antonio Carlos Jobim, 1960).
Os takes no estúdio legitimam o filme porque eternizam não somente o stress da gravação – decorrido sobretudo do fato de Tom Jobim ter ficado inseguro com os arranjos confiados ao pianista Cesar Camargo Mariano, então na direção musical dos discos e shows de Elis, e de ter tentado em vão sugerir que as orquestrações fossem feitas pelo maestro alemão Claus Ogerman (1930 – 2016) – mas também momentos de descontração em que sobressaem as musicalidades exuberantes de Elis e Tom no canto informal de músicas como os sambas-canção Caco velho (1934) e Na batucada da vida (1945), ambos de Ary Barroso (1903 – 1964), compositor do qual Tom era devoto.
Tom Jobim e Elis Regina em Los Angeles, em 1974, na época da gravação do álbum ‘Elis & Tom’ — Foto: Divulgação / Festival do Rio
Para que o documentário não se tornasse mera repetição do especial da TV Bandeirantes, diretor e roteirista entrelaçam as imagens com depoimentos inéditos, como os dos músicos do discos (o guitarrista Helio Delmiro e o baterista Paulo Braga) e o de Cesar Camargo Mariano, que relembra com humor a “facada no peito” sentida na época pelo descaso de Jobim, que chegou a se referir ao toque do pianista “com suas pobres notinhas brasileiras”.
O roteiro também extrapola o disco em si, procurando contextualizar as trajetórias da cantora e do compositor antes e depois do álbum, mas com foco maior em Elis (sobretudo na parte final do filme).
Com conhecimento de causa, Nelson Motta lembra que, antes da gravação do disco, Tom Jobim andava amargurado, se sentindo desprestigiado e com a sensação de que a bossa nova já era onda passada.
No que diz respeito à contextualização da vida de Elis, o roteiro tem lapsos. Menciona-se a apresentação da cantora nas Olimpíadas do Exército em 1972, mas omite-se o fato de que Elis foi intimada a cantar no evento da ditadura por ter dito, em entrevista no exterior, que o Brasil estava sendo governado por gorilas.
Já o depoimento de André Midani (1932 – 2019) de que Elis se matou é feito sem qualquer base sólida, até porque, como atestado pelo laudo sobre a morte da cantora, jamais se pode afirmar com segurança que houve suicídio.
Aliás, a exposição da imagem de Elis no caixão, em close, durante alguns segundos, soa totalmente despropositada no roteiro. Até porque Elis & Tom – Só tinha de ser com você é filme sobre vidas que geraram música sublime.
Que dádiva é poder ver e ouvir Elis e Tom cantando Céu e mar (Johnny Alf, 1958) fora do rigor das gravações, mas com todo o rigor musical que ambos já tinham naturalmente, na vida!
A força da música também se impõe sobre todas as coisas quando o filme mostra o maestro Bill Hitchcock regendo as cordas do Soneto de separação (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1959), composição presente no songbook da cantora Lenita Bruno (1926 – 1987) com a obra de Tom com Vinicius de Moraes (1913 – 1980) – disco de 1959 que inspirou Elis a sugerir a André Midani o álbum com Tom quando o executivo lhe ofereceu um presente para celebrar os dez anos da artista na gravadora Philips.
Ver e ouvir Elis cantando Pois é (Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, 1970) no estúdio, com imagem e som límpidos, é testemunhar o Brasil que deu certo e que reverbera no filme Elis & Tom – Só tinha de ser com você com a esperança de que dias melhores virão.
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