O homem criou a agricultura e, com ela, a chance de domar a natureza para gerar alimentos de maneira mais eficiente. Com ela, veio também a pecuária e, assim, aumentamos consideravelmente o total de comida à disposição da humanidade e pudemos evoluir como espécie de muitas maneiras.
Mas se a prática de cultivar e criar nossos alimentos representou muitos ganhos, também trouxe com ela alguns efeitos negativos: de uma dieta nem sempre ideal às explosões populacionais e a criação de elites favorecidas — a raiz da formação das classes sociais já estava ali.
Para alimentar mais e mais pessoas, desenvolvemos produtos químicos para aumentar a produtividade, baseamos o modelo vigente em monoculturas e criações intensivas e passamos a cobrar caro do meio ambiente.
Claro que a agricultura e a pecuária têm sido essenciais para a manutenção da vida humana na Terra, mas elas também representam hoje um desafio para todos nós em plena crise climática: como produzir mais comida sem causar um colapso?
Para muitos cientistas, a resposta pode estar nas águas, muito mais do que no solo.
Dada a crescente demanda por comida e as restrições da expansão da produção de alimentos em terra, os alimentos provenientes do oceano — ricos em nutrientes e uma fonte de proteína — estão prestes a se tornar nossa próxima grande resistência para produção alimentar capaz de suprir as quase 10 bilhões de pessoas que viverão no planeta até 2050.
Um grupo de especialistas de todo o mundo reuniu-se para analisar essa questão, contando com sua amplitude combinada de conhecimento que abrange economia, biologia, ecologia, nutrição e pesca.
E também a maricultura, termo que começa a ganhar maior projeção, e que diz respeito às práticas de cultivo da vida marinha para alimentação humana (o mesmo que a agricultura, mas feita nos mares).
São 22 pesquisadores de distintas partes do mundo que se debruçaram sobre a questão para publicar uma série de artigos (o inaugural saiu na prestigiada revista Nature) sobre a alimentação que vem do mar.
Alguns pesquisadores acreditam que o mar poderá ser mais explorado para fins alimentícios, sem que isso leve a uma exaustão do ambiente marinho — Foto: Getty Images via BBC
“Examinamos os principais setores produtores de alimentos na pesca oceânica – selvagem, peixes de maricultura e maricultura de bivalves – para estimar ‘curvas de oferta sustentável’ que levam em conta as restrições ecológicas, econômicas, regulatórias e tecnológicas. Sobrepomos essas curvas de oferta com cenários de demanda para estimar a produção futura de alimentos do mar”, diz a apresentação do artigo.
Hoje, estimam os cientistas, os alimentos provenientes do mar representam apenas 17% da produção atual de carne comestível no planeta. A pesquisa visa responder quanto de alimentos podemos esperar que o oceano produza de forma sustentável até 2050.
“Os alimentos comestíveis do mar podem aumentar em 21 a 44 milhões de toneladas até 2050, um aumento de 36 a 74% em comparação com os rendimentos atuais. Isso representaria 12 a 25% do aumento estimado em toda a carne necessária para alimentar 9,8 bilhões de pessoas até 2050”, concluem.
“Basicamente, a pergunta que estávamos tentando responder era: o gerenciamento sustentável do oceano nos próximos 30 anos significa que produziremos mais ou menos alimentos?”, pergunta Christopher Costello, professor de Economia Ambiental e de Recursos da UCSB Bren School of Environmental Science & Management, e principal autor do artigo.
Por muito tempo pensou-se que, para gerenciar o oceano de forma sustentável, teríamos que extrair menos, o que significaria menos comida do mar. O que os pesquisadores descobriram, no entanto, foi que temos que extrair de forma melhor — que tenha a sustentabilidade como valor principal.
“Se feito de forma sustentável, é possível aumentar os alimentos do mar e em uma proporção inversa em relação à expansão dos alimentos baseados em terra”, detalhou o coautor Ling Cao, membro afiliado do Centro de Segurança Alimentar e Meio Ambiente de Stanford.
“E isso pode ser feito de uma maneira muito mais ecológica para o clima, a biodiversidade e outros serviços ecossistêmicos do que a produção de alimentos em terra”.
Para isso, eles propõem ações que vão de reformas políticas, inovação tecnológica e a extensão das mudanças futuras na demanda, mas sempre tendo em conta um planejamento prévio — algo que não tivemos na agricultura e na pecuária em solo, que correspondem pela esmagadora maioria dos alimentos que consumimos.
“Se esses potenciais de produção serão realizados de forma sustentável dependerá de muitos fatores, mas queremos começar essa discussão”, acrescenta Costello.
Autor de um recém-lançado livro que tem sido considerado um dos mais importantes manifestos sobre as políticas de exploração dos oceanos (A Blue Deal: Why We Need a New Politics for the Ocean, ainda sem edição no Brasil), o professor Chris Armstrong, do Departamento de Políticas e Relações Internacionais da University of Southampton (Inglaterra), ecoa o coro de que novas políticas de exploração dos mares precisam ser criadas.
“O oceano já enfrenta muitas ameaças, e é importante que não as tornemos ainda piores. Se vamos adicionar novas indústrias oceânicas, elas terão que ser do tipo que possam ajudar o oceano a se recuperar, em vez de prejudicar ainda mais sua saúde”, afirma, em entrevista à BBC Brasil.
Ele cita, por exemplo, a criação extensiva de salmão e camarão que têm impactos ambientais muito negativos aos mares — de danos à vida marinha e do uso de antibióticos nas águas.
Mas indica a exploração sustentável de animais que podem nos trazer maiores benefícios.
“A criação de mexilhões e de ostras são muito positivas em seus impactos, porque elas podem até ajudar a limpar os ecossistemas costeiros e mitigar problemas. O mesmo vale para o cultivo de algas marinhas, que também pode ajudar a combater as mudanças climáticas”, ele afirma.
Armstrong também refuta a ideia de que o oceano é ‘subexplorado’, como defendem alguns pesquisadores— ainda que defenda que a oferta de alimentos provenientes do mar possam aumentar de forma ordenada e sustentável.
“Nossa primeira prioridade deve ser garantir que os ecossistemas oceânicos sejam protegidos, não que sejam ‘usados’ ao máximo”, ele ressalta.
Com a demanda global por alimentos aumentando e questões sérias se acentuando sobre se a oferta pode aumentar de forma sustentável, o mar pode indicar uma solução no horizonte. Claro que expansão baseada em terra é possível, mas pode exacerbar as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade e comprometer a prestação de outros serviços ecossistêmicos.
“Concordo que no futuro nos voltemos para novas fontes de alimentos do mar. Sobretudo porque seus impactos ambientais são menores do que as formas convencionais de pesca e piscicultura e de outras maneiras que conhecemos para produzir alimentos para bilhões de pessoas”, conclui.