Nesta segunda-feira (20), Dia da Consciência Negra, levantamento inédito obtido pelo g1 mostra como está a situação por estado em relação a iniciativas para debater preconceito. Rodas de conversa, exposições e outras atividades para discutir o racismo fazem parte da rotina de uma escola municipal de Camaçari (BA), mas não é assim em todo o país. A realização de atividades antirracistas extracurriculares está em queda nos colégios do Brasil. Levantamento inédito obtido pelo g1 que detalha a situação nos estados aponta que o cenário é mais crítico no Piauí, Roraima, Amazonas, Maranhão e Amapá.
Os números que mostram o retrocesso são divulgados justamente no ano em que a lei que obriga o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira completa 20 anos. O recuo não significa que livros e professores estejam ignorando o tema, já que não há instrumentos ou pesquisas que avaliem o cumprimento da base curricular em sala de aula.
Mas, por outro lado, o alerta sobre a carência de projetos antirracistas vem justamente em respostas coletadas pelo governo federal diretamente com os responsáveis por administrar as escolas do Brasil e ganha ainda mais em evidência nesta segunda-feira (20), Dia da Consciência Negra.
A relevância desse tipo de iniciativa tem no seu cerne o combate ao preconceito – inclusive dentro do próprio ambiente escolar, que está no topo da lista de locais onde os brasileiros afirmam sofrer violência racial.
Só em São Paulo, por exemplo, as denúncias de discriminação em escolas estaduais registradas somente neste ano passaram de 3 mil e incluem relatos de crianças sendo chamadas de “escravo”, “macaco” e “urubu”.
Alunas do Centro Educacional Maria Quitéria exibem cartazes de personalidades negras.
Vitalina Silva/Arquivo pessoal
O que mostram os dados
Os dados foram analisados pela entidade Todos Pela Educação e apontam que, em pelo menos 15 estados, nem metade das escolas públicas ofereciam iniciativas próprias para debater o racismo.
Além disso, as ações antirracistas em escolas diminuíram em todos os estados e no Distrito Federal entre 2011 e 2021. Neste período, a média nacional de projetos sobre a temática era de 66,7% e chegou a 75,6%, mas caiu para 50,1%.
O levantamento foi feito com base no questionário do Sistema Nacional de Avaliação Básica (Saeb) aplicado a diretores escolares entre 2011 e 2021.
Para Jackson Almeida, analista de diversidade, equidade e inclusão do Todos Pela Educação, o panorama pelo país mostra a necessidade de potencializar práticas antirracistas no ambiente escolar.
Precisamos de políticas fortes de formação continuada para os professores, de intencionalidade na proposição de projetos e de uma priorização do Ministério da Educação no que diz respeito a este assunto.
Para Ana Paula Brandão, gestora do Projeto Sistema Educacional Transformador e Antirracista (Seta), a escola deveria se valer da sua diversidade para ser mais efetiva na construção de um futuro mais justo.
“O racismo é um problema de todos. Ele afeta de maneira diferente cada pessoa, alguns sofrem mais, outros quase não sofrem, mas todos são atravessados por ele”, pondera
Boas práticas existem
Se os números gerais mostram queda das ações antirracistas, um projeto desenvolvido no Centro Educacional Maria Quitéria, na região metropolitana de Salvador, vai na contramão disso.
Ele nasceu de uma inquietação da professora de Língua Portuguesa Vitalina Silva, que queria conscientizar os alunos sobre a estrutura racista da sociedade e, também, ensiná-los sobre a potência de personalidades negras.
Alunos do Centro Educacional Maria Quitéria participam de conversa sobre temas étnico-raciais.
Vitalina Silva/Arquivo pessoal
Foi em 2019, quando Vitalina passou a lecionar no Centro Educacional Maria Quitéria, que a coisa começou a tomar forma. Lá, ela encontrou um ambiente receptivo e professores dispostos a trabalhar a temática.
Vitalina introduziu em suas aulas o livro “Olhos D’água”, de Conceição Evaristo, para discutir questões raciais, de gênero e de subalternização — sempre a partir de algum elemento do currículo da disciplina, como gramática ou análise linguística.
Quando foi ensinar gêneros textuais e biografia, aproveitou para pedir aos alunos que produzissem as suas próprias versões de biografias de personalidades negras.
Alunos do Centro Educacional Maria Quitéria apresentam seus trabalhos em feira étnico-racial.
Vitalina Silva/Arquivo Pessoal
Em paralelo, outros professores, por sua vez, já trabalhavam a questão racial em suas aulas, mas foi com o apoio da direção e da coordenação da escola que as ações individuais acabaram unificadas.
Foi, então, organizada uma jornada pedagógica com oficina de letramento racial para o corpo docente, que resultou, em seguida, em uma exposição dos trabalhos produzidos pelos alunos para a comunidade escolar.
Alunas do Centro Educacional Maria Quitéria exibem ensinamentos de personalidades negras em feira étnico-racial na escola.
Vitalina Silva/Arquivo pessoal
“Até aqui, os alunos já tinham internalizado aquele conhecimento. Eram os donos das informações e eles mesmos apresentavam seus projetos, suas pesquisas. E foi lindo ver que eles tinham perdido a vergonha de falar e se apropriavam daquilo”, relembra Vitalina.
O projeto, que surgiu de maneira despretensiosa, conseguiu atingir propósitos maiores do que o esperado pela professora, e não parou aí.
Hoje, um dos objetivos desse projeto é ressignificar a história e trazer o protagonismo do povo afro-brasileiro e africano para nossos estudantes se reconhecerem como herdeiros de pessoas de valor cultural, histórico e intelectual, que contribuíram para o mundo.
O reconhecimento externo não demorou a vir. Neste ano, a professora Vitalina foi uma das vencedoras do Prêmio LED, na categoria educador, e recebeu R$ 200 mil.
“Foi muito bom receber esse prêmio. Mas o melhor foi ver o projeto nascendo e os alunos aprendendo, se conhecendo e se reconhecendo no processo. Esse foi o grande prêmio”, avalia.
Alunos do Centro Educacional Maria Quitéria exibem painel biográfico de Luís Gama.
Vitalina Silva/Arquivo pessoal
20 anos da lei sobre ensino de história afro-brasileira
Há 20 anos, vigora no Brasil a lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no país. Embora não exista um mapeamento da sua aplicação, educadores dizem que está longe de ser uma realidade e fazem cobranças.
“Uma lei de 20 anos que não é aplicada precisa de fiscalização e de intenção”, afirma Jackson Almeida, analista do Todos Pela Educação.
Para Ana Paula Brandão, gestora do projeto Seta, há um certo comodismo entre gestores educacionais em abordar a temática racial apenas em momentos específicos do calendário escolar. Enquanto isso não mudar, adverte, a legislação não sairá do papel.
A lei diz respeito a transformar a forma de ensinar. Não é chegar em novembro, mês da Consciência Negra, e fazer uma atividade com os estudantes para a comunidade escolar. Isso deveria acontecer o ano todo, e o 20 de novembro deveria ser a culminância, a data para celebração.
Para que a lei seja efetiva, a especialista ressalta a necessidade de se oferecer ferramentas aos educadores para que percebam o momento de atuar e ressignifiquem o futuro dos alunos.
A legislação especifica que tanto escolas públicas quanto privadas devem abordar obrigatoriamente em sala de aula os seguintes tópicos:
História da África e dos africanos;
A luta dos negros no Brasil;
A cultura negra brasileira; e
O negro na formação da sociedade nacional.
Esses conteúdos devem ser dados em todo o currículo escolar, mas, em especial, nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
O que diz o MEC
Fachada do Ministério da Educação (MEC)
Agência Senado/ Divulgação
Ao g1, o Ministério da Educação (MEC) afirmou que, de acordo com a legislação, cabe aos estados e municípios acompanhar a implementação das diretrizes curriculares.
A pasta diz ainda que muitas políticas educacionais foram descontinuadas nos últimos governos, como a de fomento a formação de professores.
No entanto, elenca algumas medidas adotadas desde o início do governo Lula, incluindo a recriação de uma comissão para assegurar a participação social na política do MEC de educação para as relações étnico-raciais; a criação de um programa de formação continuada para educação quilombola; e o lançamento de programas de pós-graduação.
O que dizem os estados
Procurado, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), que reúne os secretários estaduais do país todo, destacou ações individuais de alguns estados:
Sergipe: lançamento de um selo com o objetivo de premiar práticas pedagógicas inclusivas das escolas;
Espírito Santo: programa estruturado de educação para as relações étnico-raciais;
Bahia: premiação específica para reconhecer projetos escolares que valorizem a história e a cultura africana, afro-brasileira e indígena;
São Paulo: distribuição de obras de autores negros e indígenas, sendo que uma escola se destacou por criar uma biblioteca inteira antirracista.
O g1 também procurou as cinco secretarias estaduais de educação com piores colocações na pesquisa sobre projetos antirracistas (Piauí, Roraima, Amazonas, Maranhão e Amapá), mas apenas Roraima e Maranhão responderam.
Roraima: A Secretaria de Educação informou que as temáticas étnico-raciais são trabalhadas no currículo escolar em todas as etapas.
Maranhão: A Secretaria da Educação afirmou que segue as exigências da legislação sobre o ensino da história africana e que apoia as redes municipais com orientações pedagógicas, a disponibilização de material didático e acompanhamento das práticas escolares.