Nélida Piñon, uma escritora brasileira pioneira cuja escrita provocativa ganhou alguns dos prêmios mais prestigiosos do mundo e que fez história ao se tornar a primeira mulher a presidir a academia literária do país, morreu em 17 de dezembro em Lisboa. Ela tinha 85 anos.
Sua secretária e amiga de longa data, Karla Vasconcelos da Silva, disse que a causa foram complicações de uma cirurgia de emergência pela qual ela passou após lutar contra um câncer no estômago.
A Sra. Piñon é amplamente considerada uma das maiores escritoras contemporâneas do Brasil, admirada por seu uso magistral do português e sua abordagem lúdica da forma literária.
“A literatura abriu as portas do paraíso e, ao mesmo tempo, do inferno para mim”, disse Piñon a uma rádio portuguesa em 2021, referindo-se aos altos e baixos do processo de escrita. “Sempre vivi com intensidade. Não deixei de amar profundamente a língua portuguesa, que é o grande propósito da minha vida.”
Seu uso caprichoso do simbolismo religioso e sua exploração da sexualidade e do erotismo foram considerados ousados no Brasil profundamente católico, que foi governado por uma ditadura militar repressiva até 1985. E sua experimentação com o barroco e o surreal a diferenciou da maioria dos outros escritores brasileiros de o tempo dela.
A Sra. Piñon escreveu mais de duas dezenas de livros, incluindo os romances “A Casa da Paixão” (1972) e sua obra mais conhecida, “A República dos Sonhos” (1984), inspirada na migração de sua família da Galícia para o Brasil , uma região autônoma da Espanha. Ela também escreveu contos, memórias, ensaios e discursos.
De 1996 a 1997, a Sra. Piñon foi presidente da Academia Brasileira de Letras, instituição cultural que atua como a principal autoridade em língua portuguesa do país. Ela foi a primeira mulher a ocupar esse cargo.
“Ela foi uma pioneira em muitos aspectos”, disse Isabel Vincent, autora e jornalista investigativa cuja amizade com Piñon durou quatro décadas. “E ela estava ciente do tipo de coisas pioneiras que estava fazendo.”
O trabalho de Piñon ganhou prêmios no país e no exterior, incluindo o prestigioso Prêmio Príncipe das Astúrias de Literatura, considerado o equivalente espanhol ao Prêmio Nobel. Ela também é duas vezes vencedora do maior prêmio literário do Brasil, o Prêmio Jabuti.
Sua escrita foi trazida pela primeira vez para leitores de língua inglesa na década de 1970 por Gregory Rabassaum distinto tradutor de literatura espanhola e portuguesa que também trabalhou com nomes como Gabriel García Márquez.
Embora o alcance global da obra de Piñon nunca tenha se igualado ao de contemporâneos latino-americanos mais conhecidos como García Márquez, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa ou Isabel Allende, sua escrita encontrou um público entusiasmado fora do Brasil e foi traduzida para cerca de 30 idiomas.
“Uma obra estupenda, literatura de alto nível”, escreveu a Publishers Weekly sobre “A República dos Sonhos” em 1991. “A plenitude amazônica da imaginação de Piñon a coloca na categoria de gênio.”
Nélida Cuiñas Piñon was born on May 3, 1937, in the Vila Isabel neighborhood of Rio de Janeiro. Her father, Lino Piñón Muíños, a merchant, was a Galician immigrant; her mother, Olivia Carmen Cuíñas Piñón, a homemaker, was born in Brazil to Galician parents.
Quando criança, a Sra. Piñon era uma leitora voraz, encantada pelo mundo da fantasia de contar histórias. Ela começou a escrever cedo, vendendo suas histórias manuscritas para seu pai e outros membros da família por alguns dólares cada.
“Eu queria ser escritora”, disse ela ao jornal brasileiro Estadão em 2021. “Não sei como nem por quê, só sabia que adorava as histórias. Sobretudo as narrativas impossíveis e, quem sabe, até as ilógicas. Porque a ausência de lógica deu mais força à história.”
Quando a Sra. Piñon tinha 10 anos, sua família mudou-se para a aldeia rural na Galícia, onde seu pai havia crescido. Morando lá por dois anos, ela aprofundou seus laços com a herança familiar, à qual mais tarde faria referência em sua obra, escrevendo frequentemente sobre as ideias de pertencimento e ancestralidade.
Depois que a família voltou para o Brasil, a Sra. Piñon passou a estudar na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde se formou em jornalismo. Ela começou sua carreira escrevendo para jornais e revistas.
Em 1961 ela publicou seu primeiro livro, “Guia-mapa de Gabriel Arcanjo”, um romance que imita um extenso diálogo entre um arcanjo e uma mulher que quer viver fora da fé cristã. Mas não foi até “A República dos Sonhos”, mais de duas décadas depois, que o status de Piñon no mundo literário brasileiro foi consolidado.
Descrita por amigos como dinâmica e inquieta, a Sra. Piñon viajou muito e passou um tempo morando na Europa e nos Estados Unidos, embora o Rio de Janeiro continuasse sendo sua base. Ela lecionou na Universidade de Miami de 1990 a 2003 e foi professora visitante em Harvard, Columbia e Georgetown.
Nos últimos anos passou longos períodos em Portugal, a pesquisar o último romance que publicou em vida, “Um Dia Chego a Sagres” (2020), que escreveu à mão porque a sua visão estava a desaparecer rapidamente.
A Sra. Piñon se apoiou em uma pesquisa meticulosa enquanto escrevia seus romances. Ao escrever “Voices of the Desert”, uma releitura erótica de “Mil e Uma Noites”, ela leu o Alcorão duas vezes, de acordo com Vincent.
Seus gostos em arte eram variados. Amante de westerns, ela adorava rever filmes como “Por um Punhado de Dólares” e “O Bom, o Mau e o Feio”. Quando ela escrevia, muitas vezes ouvia uma ópera de Wagner.
A Sra. Piñon iniciou conversas com quase todo mundo que conheceu, sempre em busca de uma compreensão mais profunda da natureza humana, disse Vincent em uma entrevista por telefone.
“Ela era curiosa sobre as pessoas; todos a fascinavam”, disse ela. “Essa era a missão dela, tentar entender como as pessoas pensavam, tentar entender a psique humana.”
A Sra. Piñon não deixa sobreviventes imediatos. Ela nunca se casou ou teve filhos, optando por se concentrar em sua escrita, disse da Silva. Uma figura popular nos círculos literários de elite tanto em casa quanto no exterior, ela contou com Clarice Lispecter, Jorge Amado, Toni Morrison e Susan Sontag entre seus amigos íntimos ao longo dos anos.
“Ela costumava dizer: ‘A literatura não me deve nada. Devo tudo à literatura’”, disse Silva.
Perto do fim de sua vida, a Sra. Piñon começou a ditar seu trabalho em um gravador. A Sra. da Silva transcreveu suas palavras e as imprimiu em uma fonte grande, para que a Sra. Piñon pudesse revisar sua prosa.
A Sra. Piñon escreveu um livro final antes de sua morte, que deve ser publicado na primavera de 2023.
“Ela estava se despedindo com este livro”, disse da Silva. “Foi sua despedida do mundo.”